Gostaria de dizer - de poder dizer, sinceramente - que é trabalhar, cuidar do filho, das gatas, da casa, que me faz cansar e ofegar, encontrar-me em cacos ao fim da noite; seria, ao menos, um cansaço útil. Mas não.
É o cansaço que sempre tive do mundo - nasci com ele - aliado à musculatura já decrépita de minhas mais de quatro décadas - um Atlas reumático e artrítico.
O fato é que, ao fim do dia, quando posso relaxar por uns momentos e fazer algo por mim, não há disposição para mais nada. Não consigo me concentrar em uma leitura, sequer em um filme mais longo. O máximo que dou conta é de apagar as luzes da casa, sentar-me à sacada com um belo dum canecão de cerveja e ouvir uma musiquinha. E como também não tenho mais paciência (ou ânimo) de ficar escolhendo entre meus CDs o que vou ouvir, costumo sintonizar no canal de músicas da TV a cabo, alterno-me entre três de suas estações, MPB, Rock Brasil e Anos 80.
Ontem, dei sorte. Mal acabara de me sentar no escuro e a estação Rock Brasil me estilingou nos ouvidos a canção A Cruz e a Espada; terceira faixa, lado A, do LP Revoluções por Minuto (1985), do grupo RPM.
A Cruz e a Espada é o Paulo Ricardo em sua melhor forma, em seu apogeu, na ponta dos cascos, mijando contra o vento. Na época, Paulo Ricardo foi muito mais que um vocalista de uma banda de sucesso. O cara era uma força da natureza, um elemental, Apolo e Dionísio amalgamados. Era o cara que todo cara queria ser e o cara para quem toda mulher queria dar.
Em suma, resumindo, condensando e concentrando : A Cruz e a Espada é Paulo Ricardo nos tempos em que ele comia a Luciana Vendramini.
O LP Revoluções por Minuto está no meu pódio dos anos 80, no meu panteão do que se convencionou chamar de rock Brasil.
Em primeiríssimo lugar, está o LP Dois, da Legião Urbana, uma obra-prima. Depois, em segundo lugar, todos juntos e misturados, estão : As Aventuras da Blitz (1982), da Blitz; Maior Abandonado (1984 ), do Barão Vermelho; A Revolta dos Dândis (1987), do Engenheiros do Hawaii; Cabeça Dinossauro (1986), dos Titãs; Batalhão de Estranhos (1984), do Camisa de Vênus; Cantando no Banheiro (1983 ), do Eduardo Dusek; Nós Vamos Invadir a sua Praia (1985); Capital Inicial (1986), do Capital Inicial; Cidades em Torrente (1986), do Biquíni Cavadão; O Rock Errou (1986 ), do Lobão; Nosso Louco Amor (1983), da Gang 90; e alguns outros que, provavelmente, estou a cometer a injustiça da fraca memória.
A Cruz e a Espada é de uma tristeza belíssima; difusa, não obstante, contundente, lancinante. É a inocência e a ingenuidade perdidas - havia um tempo em que eu vivia um sentimento quase infantil, havia o medo e a timidez, todo um lado que você nunca viu -, a inocência e a ingenuidade que tiveram que ser perdidas, postas de lado, no mínimo, camufladas - outra criança adulterada pelos anos que a pintura escondia (nunca entendi muito bem o que ele quis dizer com isso, mas acho bonito pra cacete, e o bonito, muitas vezes, não é para ser entendido, não se presta a essa função, só à de ser bonito).
Há, ainda, uma bela versão da música gravada ao vivo com a participação especial de Renato Russo.
A Cruz e a Espada
(Paulo Ricardo/Luiz Schiavon)
Havia um tempo em que eu vivia
Um sentimento quase infantil
Havia o medo e a timidez
Todo um lado que você nunca viu
Um sentimento quase infantil
Havia o medo e a timidez
Todo um lado que você nunca viu
Agora eu vejo,
Aquele beijo era mesmo o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
Aquele beijo era mesmo o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
E agora eu ando correndo tanto
Procurando aquele novo lugar
Aquela festa o que me resta
Encontrar alguém legal pra ficar
Procurando aquele novo lugar
Aquela festa o que me resta
Encontrar alguém legal pra ficar
Agora eu vejo,
Aquele beijo era mesmo o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
Aquele beijo era mesmo o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
E agora é tarde, acordo tarde
Do meu lado alguém que eu nem conhecia
Outra criança adulterada
Pelos anos que a pintura escondia
Do meu lado alguém que eu nem conhecia
Outra criança adulterada
Pelos anos que a pintura escondia
Agora eu vejo,
Aquele beijo era o fim, ah era o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
E nunca mais, nunca mais, ou...
Aquele beijo era o fim, ah era o fim
Era o começo
E o meu desejo se perdeu de mim
E nunca mais, nunca mais, ou...
3 Comentários
Excelente a sua lista. Eu incluiria o primeiro LP do Capital Inicial (1986) que tem várias pérolas, como "Música Urbana", "Psicopata", "Fátima", "Veraneio Vascaína" (censurada pela Polícia Federal), "Leve Desespero" entre outras, que inclusive levou o Capital ao seu primeiro disco de ouro.
ResponderExcluirRealmente, pensei no Capital quando estava rascunhando a postagem no caderninho que sempre carrego comigo, depois esqueci, mas ele já está lá, acabei de colocar. Pensei também nos EPs do Zero e do Plebe Rude, mas, apesar de muito bons, não tem o mesmo nível dos citados.
ExcluirAh, e acabei de me lembrar agora (e também já inclui) do Cidades em Torrente, do Biquini Cavadão, muito bom.
Excluir