Texto de um de meus alter egos, de uma dimensão vindoura, de dias de um futuro esquecido, Antenor Barbeiro:
Aprendi o ofício de barbeiro aos 11 anos, levado por meu velho pai, um portuguesão bronco de Cascais, à barbearia de um patrício seu, o seo Afonso.
Aprendi o ofício de barbeiro aos 11 anos, levado por meu velho pai, um portuguesão bronco de Cascais, à barbearia de um patrício seu, o seo Afonso.
Apesar
de ser comerciante de confortáveis posses e ter tido condições de bem
manter os três filhos longe da faina, meu pai fez questão de que todos
aprendessem um ofício, como se dizia à época. Eu fui ser barbeiro, o do
meio, alfaiate, e o caçula, que começou como office boy, acabou concursado pelo Banco do Brasil.
Que
dizia meu finado e já decomposto pai - que ouviu do pai dele, que ouviu
do pai do pai dele, que ouviu do pai do pai do pai dele, que deve ter
ouvido do primeiro macaco de nossa árvore genealógica - que cabeça vazia
era oficina do diabo.
Eu
não tive filhos para transmitir-lhes o atávico conhecimento, mas acho
que é isso mesmo. Hoje, vejo essa meninada à toa por aí - diz que tem
até uma lei que proíbe menino de trabalhar -, vagabundeando pelas ruas,
pelas praças, pelos shoppings, sem nenhuma obrigação a cumprir, com uma
vida que é só facilidades, confortos e liberdades. E como eles
aproveitam esse vidão que lhes caiu dos céus? Vão fumar maconha! Ou dar o
rabicó!
Não
sou homem de muitas letras, a muito custo terminei o antigo grupo, mas
tenho certeza de que muito da droga e da perobagem que aí estão têm a
ver com a vida mansa dessa garotada. A vida na flauta deixa o gajo
frouxo das vontades - e aí a droga entra -, e frouxo das pregas - e aí
todo mundo sabe o que entra, pois não?
O
que estou a dizer é que de petiz me fiz homem em ambiente de trabalho
árduo e cansativo, exclusivamente masculino, chucro, de assuntos e
conversas de baixo calão. E barulhento. Muito barulhento. Sobretudo
barulhento.
Há
dias em que encerro o expediente com os ouvidos exaustos, extenuados -
muito mais fatigados que minhas varicosas pernas, que meus braços e que
minhas mãos, já há décadas tortas e deformadas pelo empunhar da tesoura,
pente e navalha. E só. Que aqui não tem isso de secador de cabelo, não.
Aquele vento quente na nuca e atrás da orelha não é coisa de barbeiro, é
de cabelereiro.
O
ouvido é que mais sofre. Ninguém percebe isso, mas o ouvido é que não
tem descanso em nenhum momento. As pernas, a gente se senta, estica-as
um pouco, feito um lutador de boxe cansado, e volta para o round
seguinte. Os olhos, secos, vermelhos, ardidos, a gente fecha um tantinho
e o escuro lhes serve de hidrantante e analgésico; até o nariz,
saturado dos cheiros do talco Ross, da espuma de barba Bozzano e da aqua
velva Williams, a gente pode tapar e conceder-lhe breve descanso de sua
labuta.
Os
ouvidos, não. Por mais que se tente isolá-los das conversas altas da
freguesia, um fiapo de som, de barulho, sempre consegue lhes invadir. O
ouvido nunca para de ouvir. O ouvido não tem aqueles 15 minutos de
descanso para ir ao banheiro, tomar um café, pitar um Minister ou um
Vila Rica.
De
vingança, feito funcionário que deseja ser demitido, o ouvido começa a
mal trabalhar, começa a sabotar seu trabalho. E nem digo de ficar surdo.
Só de pirraça, o ouvido começa a embaralhar as palavras à nossa volta,
mistura-as no meio do caminho para o cérebro.
Pega
uma palavra que um fala aqui, uma que outro fala ali, outra que outro
diz acolá, vai quebrando e misturando as sílabas, distorcendo tudo,
formando palavras que nunca foram ditas - e tudo de sacanagem, tudo de
putaria.
Dia
desses, tive que ir ao centro velho da cidade. Aquilo é um horror, uma
bagunça só, uma sujeira de dar desgosto, um povo feio e mal-educado, e
barulho pra tudo quanto é lado : carros, músicas saídas dos
alto-falantes das lojas, os berros dos vendedores ambulantes etc etc.
De repente, ouvi : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Olhei e vi que o anúncio provinha de uma moça, uma jovem na faixa dos vinte e poucos anos, com um traje colorido berrante, havia um logotipo à esquerda e à altura do peito de sua blusa, que o véio, sem óculos que estava, não consegui ler. Andei mais uns quarteirões e de novo : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Outra moça, de mesmo biótipo que a primeira, de mesmo uniforme. Mais algumas esquinas e outra vez : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Aí, o véio não resistiu. Cheguei mais perto para conferir a generosa oferta. Não era nada daquilo. Era o ouvido pregando peças no véio. As moças eram promotoras da operadora de celulares Tim, e o que elas diziam era : dois chips da Tim por 10 "real", dois chips da Tim por 10 "real" Uma pena. O véio achou que ia se dar bem naquele dia.
De repente, ouvi : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Olhei e vi que o anúncio provinha de uma moça, uma jovem na faixa dos vinte e poucos anos, com um traje colorido berrante, havia um logotipo à esquerda e à altura do peito de sua blusa, que o véio, sem óculos que estava, não consegui ler. Andei mais uns quarteirões e de novo : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Outra moça, de mesmo biótipo que a primeira, de mesmo uniforme. Mais algumas esquinas e outra vez : - duas chupetinhas por 10 "real", duas chupetinhas por 10 "real". Aí, o véio não resistiu. Cheguei mais perto para conferir a generosa oferta. Não era nada daquilo. Era o ouvido pregando peças no véio. As moças eram promotoras da operadora de celulares Tim, e o que elas diziam era : dois chips da Tim por 10 "real", dois chips da Tim por 10 "real" Uma pena. O véio achou que ia se dar bem naquele dia.
Pior
foi na semana passada. Apareceram uma coceiras, umas inflamações no pau
do véio, e lá fui eu ao médico. Dermatite de contato, o doutor
diagnosticou. O pau fica lá à toa o dia todo, num lugar quente, úmido,
esfregando a cabeça na cueca, vai ferindo e dá essas infecções. "Mas o tratamento é muito simples, seo Antenor", disse o médico, "é só passar na bucetinha, de oito em oito horas, durante uma semana".
Passar
na bucetinha? E onde o véio ia arrumar uma bucetinha para passar o pau a
cada oito horas? Além disso, desde quando passar o pau numa bucetinha
cura alguma coisa? Antes pelo contrário. O véio, quando não era véio, já
pegou muita moléstia de bucetinhas, muita gonorreia, que era doença à
toa, curava fácil com penicilina.
Olhei espantado para o médico e perguntei : passar o pau onde, doutor? "Não é onde, seo Antenor, é o quê", respondeu. Tirou tubinho de amostra grátis da gaveta e me esclareceu : "o senhor vai passar essa pomada aqui, Nebacetin. Nebacetin de oito em oito horas."
Nada de na bucetinha. De novo o ouvido me sacaneando. De novo eu perdendo a chance de me dar bem. Homessa!
Comecei
a ficar ressabiado. Seria o tal do Alzheimer, que na minha época era
chamado de caduquice? Estava pensando seriamente em consultar um médico
da cabeça, fazer um eletro da cachola. Foi quando contei esses causos
para o dr. Edson, freguês antigo, doutor dentista. O dr. Edson é formado
pela USP, em uma das primeiras turmas, e é um craque em palavras
cruzadas, vive com um caderninho delas nas mãos. E ninguém sabe mais das
coisas que doutor formado na USP e que um aficcionado em cruzadas.
Primeiro,
o dr. Edson riu a se valer das minhas histórias; depois, disse que eu
não tava gagá coisa nenhuma, não ainda, não por isso. Falou que isso era
cacofonia. Acontece quando a junção de duas sílabas, uma no final da
palavra e
outra no início de outra, se encontram, se encavalam e resultam um "som
desagradável",
acabam formando outra palavra, às vezes de baixo calão. E deu-me alguns
outros exemplos : a boca dela, desculpa então, uma mão, o albúm dela
etc.
-
Êêê, seo Antenor - disse o dr. Edson -, quer dizer, então, que o senhor
achou que fosse se dar bem, né? Duas chupetinhas por 10 reais. E que
fosse chegar na farmácia com receita médica para uma bucetinha três
vezes ao dia?
- Pois é, doutor, mas a culpa não é minha, não é? É da tal cacofonia.
- Isso não é cacofonia, não, seo Antenor, é taradice, mesmo. É excesso de testosterona guardada no saco.
-
Quem me dera, dr. Edson, quem me dera. Há muito se foi o tempo em que
eu mijava contra o vento. Hoje, eu só acerto o dedão do pé.
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