Vagalhão que se arrebenta, se acalma e se espraia em tapete de espuma efervescente, Marina sai de cima de Rubens, senta-se na cama, as costas contra a parede e puxa o lençol para o meio das pernas. Ofega. Suada e salgada. Marina não usa nenhum tipo de desodorante, antiperspirante, hidrantes e outros que tais. Toma dois, três, às vezes, quatro banhos diários, se necessário achar, mas nunca usa mascaradores de cheiro.
Marina cheira a sal, óleo e sargaço; a mangue e lodaçal, em certos lugares.
Rubens sai da cama, vai à cozinha e volta com duas licenciosas doses de rum, um copo em cada mão. Passa o com maior quantidade de gelo para Marina. Marina emborca o rum sem medo nem cerimônias. Retém o líquido âmbar e amadeirado por um tempo na boca, sente-o queimar suas mucosas, suas papilas gustativas, engole-o num único sorvo em seguida, sente-o a cauterizar seu esôfago, a se aninhar e a lhe pôr enxofre fumegante no estômago. Queria-o a encharcar cada uma de suas células : muito mais que uma bebida alcoólica, um antisséptico para a sua existência.
- Você lembra do tempo em que andávamos por aí, sem lenço nem bússola e sabíamos exatamente quem erámos, sabíamos onde queríamos chegar? - pergunta Marina.
- Hoje temos nossos diplomas, nossas profissões "estáveis", as escrituras de nossas casas, as nossas raízes de baobá, as nossas mortes como certas, os nossos sonhos realizados - fala Rubens.
- Pois é..., então, por que e de onde essa vontade de nos lançarmos em naus furadas e periclitantes, querer descrer de Galileu e despencar pela borda do mundo? - Marina secando o copo.
- Talvez pela vontade de não sentirmos o chão sob nossos pés, pela vontade de voar, que volta e meia nos retorna e aflige.
- Mas já sabemos, Rubens, descobrimos, que não podemos voar.
- Nunca descobrimos nada, sempre soubemos da impossibilidade de voar. Mesmo quando ainda tentávamos.
Rubens sai e volta com mais duas doses. Sem gelo, ambas.
- E por quê? - insiste Marina - Essa vontade já não deveria estar morta e enterrada frente aos fatos? Por que a exumamos de tempos em tempos? Por que nos frustrarmos repetidamente com seus ossos?
- Vontade não rui nem se alicerça frente a fatos. Vontade é desejo, é vaidade, é capricho. Cede sob sua própria insustentabilidade, e ressurge de sua própria leveza e leviandade. A vontade de voar nos eleva mais que o voo em si. A concretização do voo se tornaria em uma rotina, com o tempo, nos acomodaria em altitudes cada vez mais baixas, engessaria-nos; se voássemos, perderíamos o prazer do voo.
- A realidade do voo cortaria nossas asas? É isso que está dizendo? - e Marina dá mais um gole no rum, de fazer inveja a qualquer pirata.
- E não é o que toda realidade faz? Corta-nos as asas, engaiola-nos e, a exemplo do Assum Preto, nos fura e nos cega os olhos para que, não vendo mais as grades e imaginando ainda o azul infinito às nossas costas, cantemos melhor?
- Então, se tudo, o tempo inteiro, é só ilusão, o que nos resta, Rubens?
- Nos resta matar esse rum e cantar aquela do Oswaldo Montenegro, Estrelas : Pela marca que nos deixa a ausência de som que emana das estrelas, pela falta que nos faz a nossa própria luz a nos orientar. Doido corpo que se move, é a solidão nos bares que a gente frequenta, pela mágica do dia, que independeria da gente pensar. Não me fale do seu medo, eu conheço inteira sua fantasia e é como se fosse pouca e a tua alegria não fosse bastar. Quando eu não estiver por perto, canta aquela música que a gente ria, é tudo que eu cantaria e quando eu for embora, você cantará.
- Até que você canta bem, Rubens - Marina já se encostando e se enroscando em Rubens, sal, óleo e algas.
- Canto o caralho que canto!!! Tá querendo dar de novo pra mim, né?
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