A Histórica Injustiça Às Duplas Personalidades

Seja na literatura, cinema ou quadrinhos, as duplas personalidades - os duplos - sempre sofreram inomináveis injustiças, foram concebidas invariavelmente como manifestações perniciosas de uma personalidade primária, essa, sim, reta, proba e produtiva socialmente. Nunca foi pensada situação inversa, um calhorda que tenha desenvolvido um duplo honesto.
O duplo é feio, ruim, deformado física, moral ou mentalmente, sujo, asqueroso, assustador, pervertido, punível.
O dr. Jekyll,
médico e dândi vitoriano, para começar com o exemplo mais clássico e representativo, toma um goró dos fortes e Mr. Hyde, uma instância mais primitiva de seu cérebro, é libertado : atarracado, simiesco, arruaceiro e beberrão, se esgueirando pelos muros, saindo e chegando pelos fundos da residência de Jekyll.
Construído de partes avulsas de vários cadáveres, costuradas a lhe dar forma vagamente humana, o Monstro de Frankenstein, abrutalhado, tosco, pinos no pescoço e - o pior - com a cara canastrona de Boris Karloff, é o duplo de seu criador, Victor Frankenstein, cientista e nobre.
Ainda na literatura inglesa, há Dorian Gray e seu duplo, o retrato, gêmeo escondido no porão e depositário de todos os vícios da alma do viadinho Gray.
Pulando para os quadrinhos, aparece o dr. Robert Bruce Banner - eminente físico nuclear, bonzinho, obediente, comportado, noivo de uma moça boazinha, obediente e comportada - e o casca grossa Hulk, seu duplo liberto pela radiação gama, burro como ele só, cinza, monossilábico, um bate-estaca humano, um Jekyll/Hyde da era atômica; inclusive e também, o Hulk, com a cara do Boris Karloff nos desenhos originais de Jack Kirby, um Frankenstein dado à luz pela radiação ao invés da eletricidade.
Harvey Dent, promotor público e loiro paladino da justiça, ao ter metade de seu rosto desfigurada por ácido, viu surgir Duas-Caras, seu eu-psicótico, homicida e arqui-inimigo de Batman, outro que também não é muito bom da "bola".
No cinema, Jerry Lewis também se arriscou na dicotomia Jekyll/Hyde em "O Professor Aloprado" e quase inverteu o estereótipo; no filme, o duplo do professor dentuço, de jaleco e quatro-olhos, é um cara bonito, bem-apessoado e bem-falante, brilhantina nos cabelos, voz de crooner de big band. Quase foi quebrado o paradigma, mas Jerry não resistiu: o bonitão era um cafajeste e mau-caráter a não ter mais tamanho.
Ah, desprezem, por favor, a refilmagem de "O Professor Aloprado" feita por Eddie Murphy, onde ele obteve a proeza de cagar na entrada e embostear na saída.
Ainda no cinema, a belíssima, de olhos faiscantes e sedenta de sangue, pantera negra que estufa, rompe a pele e aflora da belíssima, de olhos faiscantes e sedenta de sexo, Nastassja Kinsky em "A Marca da Pantera", e que acaba seus dias enjaulada em um zoológico londrino aos cuidados do veterinário, ex-amante de Nastassja.
Injustiças, camadas e mais camadas, eras geológicas de injustiças contra as duplas personalidades.
Eu também tenho meu duplo, meu alterego, o Azarão. Que é quem vos escreve nesse blog e hoje cedeu-me esse pequeno espaço, o qual teimo em alargar.
O meu duplo gosta de tomar rum sentado nos telhados de prédios, gosta de andar de madrugada por ruas pouco seguras, gosta de bandas de rock'n'roll em bares esfumaçados, gosta de mijar pela janela do apartamento em noites de tempestade, de travessias noturnas equilibrando-se por sobre tubulações de esgoto que vão de margem a margem do rio, de sentar-se em escadarias ásperas de praças mal-cuidadas e, tomando um bom vinho barato, tinto e seco, jogar conversa fora e assistir à madrugada se diluir.
Meu duplo não é mau-caráter, não tem dentes tortos ou pontudos, nem enormes unhas sujas ou hálito fétido, não é retardado, não é psicopata, não ataca, morde, assusta ou faz mal a ninguém. E escreve bem melhor que eu.
Por isso, estou pensando em fundar uma ONG em defesa dos alteregos, fazer homologar um estatuto de proteção aos direitos dos duplos, instituir um Dia Nacional da Consciência dos Duplos e adotar uma política de cotas para eles em Universidades e concursos públicos.
Afinal, por que as duplas personas não podem ser, ambas, igualmente belas, vivazes e inteligentes, como no meu caso?

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