Pequeno Conto Noturno (18)

- Eu te amo. Embora isso, em termos práticos, não resolva, mude, ou signifique absolutamente nada. -, diz Cassandra, e sai porta afora. Mundo adentro.
Rubens vai até a cozinha, desliga o forno, tender com cravos encravados e mel e suco de laranja a incubar. Rubens gosta de tender, sempre gostou. É o único sentido do Natal para ele, comer tender. E o come cru ou qualquer que seja a forma que ele venha na embalagem, cozido, defumado. Hoje, quis incrementar. Teria visita para o Natal, Cassandra. Pegou receita de tender, com vizinha, net, mãe, nem se lembra. Receitas à puta que o pariu, pensa Rubens, enfiem vossas receitas.
Rubens fecha a válvula do gás, pega o vinho no congelador e sai.
O Batman nasceu do assassinato de seus pais; corrijo, Batman aflorou do assassinato de seus pais, no Beco do Crime, em Gotham. Sempre que paira a dúvida feito sombra sobre a sombra do morcego, Bruce Wayne volta ao Beco do Crime para reafirmar suas crenças, para beber na fonte de suas desgraças. Todo mundo tem um Beco do Crime, um local de forja. Rubens não é diferente.
Uma praça é seu Beco do Crime. Abandonada pela prefeitura, vegetação seca na época do estio e mato alto nas chuvas. Bancos de cimento cariados e uma escadaria áspera - como Rubens gosta de se pôr nessa escadaria -, cimento rústico, rugoso, cheio de acnes, empoeirado e encardido pela terra vermelha, rica em ferro.
Ali esteve com Virna pela última vez, há incontáveis anos atrás, na mais melancólica passagem de sua vida. Virna e sua dança de dedos desajeitada, Virna e sua impossibilidade de ficar. E Virna foi a primeira e única que Rubens quis que ficasse. Virna se foi. Rubens se decompôs e se rearranjou naquela praça, naquele Beco.
E é para lá que Rubens sempre volta. Como hoje.
Quase meia-noite, Rubens se senta na escadaria, desarrolha o vinho e dá a primeira golada, no gargalo, olha para as casas à sua frente, mais iluminadas que o usual do horário, e mais barulhentas também. Cassandra se foi, pensa, nunca considerou que ela fosse mesmo ficar, nem queria isso, mas achou que ela durasse até o Ano Novo. Não há viv'alma na praça e se há mortas, Rubens prefere que elas não se manifestem.
Logo hoje, pondera Rubens, preparei a porra do tender, tinha até arrumado um gorro vermelho para pôr na cabeça do pau. Mulher é que nem homem - e Rubens sabe disso -, Cassandra não teria deixado para trás uma boa foda de Natal se já não tivesse outra engatilhada. Outra foda melhor. Ou que lhe desse mais garantias futuras. Mulher gosta disso, conclui Rubens, de garantia, mais, muito mais do que gosta de pau, de qualquer pau.
Rubens dá uma emborcada de respeito e ri. Ri do mesmo ciclo repetido ad infinitum. Ri da inevitabilidade. E mais outro bom gole.
Então começam as luzes no céu, seguidas dos estampidos. Pólvora misturada com bário, estrôncio, sódio e potássio, a pirografar desenhos no céu escuro da aguardada meia-noite, cascatas verdes, flores vermelhas, cúpulas amarelas e fogo-fátuos arroxeados. Alarido de vozes e abraços e algumas buzinas, também.
Rubens ergue sua garrafa ao ar, ao céu, à cidade, ao nada, e faz seu brinde.
- Feliz Natal, mundo fodido! É bem isso o que você merece, um puto dum Feliz Natal, continuar a seguir a porra de um mito de sunga pregado  na cruz, ratos sem cérebro seguindo e dançando em torno do flautista. Um brinde pro flautista, também. Que nem precisa mais soprar seu canudo para ter os ratos aos seus pés. Um brinde, e por que não?, para Cassandra, que já deve estar pulando num outro pau a essa hora.
Rubens capricha no gole final, seca a garrafa, fica em pé, arremessa a garrafa para o meio da praça e brada:
- Feliz Natal, mundo fodido!!!

Postar um comentário

0 Comentários