O Funeral da Rô Rô

Alguns cantores, eu escuto exaustivamente durante certas fases e depois os largo meio de lado. Não os esqueço nem desgosto deles, apenas deixo de visitá-los. Em um belo dia, de repente, do nada, volta a vontade de ouví-los.
Dia desses, isso se deu com a Ângela Rô Rô, a intérprete da birita, a crooner da porralouquice, a cantora dos excessos, a "Escândalo". Tenho vasto material dela, da década de 80, mas me deu vontade de conhecer os trabalhos mais recentes, os que vieram depois dela quase empacotar, bater as botas, justamente por conta dos excessos, álcool, comida, gordura, cigarro; há uns 10 anos, creio eu.
Quis saber se a Ângela Rô Rô, além da Ângela Maria Diniz Gonçalves, havia também sobrevivido ao peripaque.
Não sobreviveu.
"Emprestei" da net alguns trabalhos novos dela e os ouvi. A música ainda está lá, intacta, talvez até melhor. A letra, não! As novas letras se pretendem luminosas e otimistas, quando o diferencial da Rô Rô sempre foram os sentimentos em crepúsculo, enfumaçados, conturbados, toldados pelo álcool, destroçados pela rebordosa do dia seguinte.
Em uma das letras, ela chega a ser herética ao cantar: "... bebendo água pra lubrificar"; em outra, comemora (mas sinceramente sem me convencer) que agora não mais fuma nem bebe, que come pouco e sem sal (puta merda) e que acorda às 6 da manhã e pedala por uma hora.
Tudo bem que a Rô Rô tenha morrido e restado só a Ângela Maria Diniz Gonçalves, isso acontece, mas manter o nome da Rô Rô na capa do disco e dizer que adora água, que água é mais prazerosa que o goró, já é desrespeito à memória do morto, é manchar a reputação de quem se foi.
Tiveram melhor sorte, a exemplos, Raul Seixas, Renato Russo e Cazuza, almas cujos excessos mataram também os seus corpos-continentes, Raul Santos Seixas, Renato Manfredini Junior e Agenor de Miranda Araújo Neto, respectivamente. Sorte dos que morte total sofreram, os que morreram de corpo e alma, os que foram um só defunto o criador e a criatura.
Rô Rô não teve essa sorte, morreu-lhe a alma e ficou um corpo a conspurcá-la, a difamá-la. Um zumbi.
Diante disso, fiz o que podia fazer: apaguei os arquivos emprestados da net, coloquei um vinil da Rô Rô no toca-discos e entornei uma garrafa de vinho, uma só - também ando mais contido.
Não fiquei de ressaca no dia seguinte. Nem vomitei, mas houvesse e teria sido meu punhado de terra lançado sobre o caixão da Rô Rô, minha coroa de flores, meu funeral tardio.

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