Acredito que cada qual, ao longo da vida, tenha desenvolvido o seu recurso ou mecanismo - questão de defesa, de autopreservação, até - de melhor começar e atravessar o acidentado e o esburacado de um dia.
Algum ritual, alguma racionalização conformista, alguma substância química que lhes deem aparentes força e motivo para não ficar na cama, para girarem a chave na ignição, darem a partida, pegarem no tranco e sobreviverem pelos meios que lhes forem possíveis, ou disponíveis.
Uma reza, um alongamento, um café forte, um tarja preta.
Tive um professor de Química no cursinho, isso lá nos idos da década de 1980, para quem o dia só começava após tomar - como ele o chamava - um pingado.
Pingado, ao menos aqui, no estado de São Paulo, é um bom copo de café forte feito em coador de pano e acrescido de um "pingo" de leite. O pingado do professor, no entanto, fazia mais jus ao nome : era um copo com uma boa dose de pinga "pingada" com um pouco de café. Um bom pingado pela manhã, nos assegurava ele, botava suas juntas e ossos no lugar, calibrava seus pneus, realinhava seus chacras. E era muito econômico, o filho da puta, tinha uma quilometragem invejável. Com uma única dose de pinga, rodava o dia inteiro, dava aulas pela manhã, tarde e noite.
Eu preciso de pouco, de muito pouco para enfunar minhas velas e singrar por um oceano sem fundo de tempo perdido. Porém, esse pouco nem sempre é possível, atingível. Esse pouco, geralmente, é alheio à minha vontade, não tenho controle voluntário sobre ele, não é tão fácil como dizer, agora vou rezar, agora vou tomar um rivotril etc.
Se depois de me levantar, fazer o café, arrumar o lanche pro filho levar na escola, cuidar das gatas etc, eu conseguir me sentar ao privadão e arriar bonito e dar uma boa duma cagada e, ao ir a pé para o serviço, me vier uma boa ideia durante o trajeto, poucas coisas, daí em diante, serão capazes de azedar o meu dia.
Uma bela cagada, uma boa ideia para escrever e meu dia, praticamente, está ganho.
Sou mesmo um homem de poucas necessidades. Mas não é sempre que os intestinos e o cérebro são assim tão regulados, não é sempre que se desapegam tão facilmente de suas cargas.
Sou homem de pouquíssimos luxos. Porém, todos sujeitos a constipações e desarranjos.
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