Essa postagem é uma sequência da anterior, na qual respondo ao comentário de meu amigo JB e também me reconheço e me assumo como um discípulo - não em qualidade, mas em intenção - de Manuel Bandeira e de seu poema Nova Poética, que nos traz a Teoria do Poeta Sórdido, que professa que o bom poema tem que chocar, tem que desestabilizar, que o bom poema é uma nódoa de lama no brim da calça recém-vestida.
O poema Garça no Esgoto é minha esquálida interpretação do Nova Poética. Tenho um apreço especial por ele. Meti-me a escrever poemas em 1989 - contava eu, então, com meus tenros, inocentes, puros e bestas 22 aninhos - e o Garça no Esgoto faz parte da leva dos primeiros cinquenta que escrevi. Tinha cá pra mim que meu assunto estaria encerrado no dia em que eu escrevesse cinquenta poemas, que não teria mais nada de novo a dizer a partir daí. Era meio que um projeto, cinquenta poemas e fim. Eu estava certo, não tive mais nada de novo a dizer depois disso, mas continuei ainda assim, perdi a integridade e a vergonha na cara.
Esse vai especialmente para você, JB, a sempre limpa e bem passada calça branca de brim, mas que adoraria, tenho certeza, rolar na lama e se amarrotar toda.
Garça no Esgoto
Sou uma brincadeira de mau gosto do Mau Gosto,
Sou uma garça no esgoto.
Bonito e roto,
O necessário que choca,
Sou quase um arroto.
Sou o gosto amargo do desgosto,
Sou uma garça no esgoto.
Lindo e escroto,
O desejo que encabula,
Sou um nervo exposto.
Sou uma ferida vazando no seu rosto,
Sou uma garça no esgoto.
Atraente e torto,
O prazer que envergonha,
Sou o que já nasce morto.
Sou o que foi belo sem nunca sê-lo,
O sorriso imposto aos lábios da modelo.
Sou a verdade que incomoda,
O que nunca deveria estar solto.
De toda a discórdia, o broto
Sou uma garça no esgoto.
2 Comentários
Tenho quase certeza que você deixou nosso bom amigo JB abismado (essa é a palavra) com tanta gentileza. E não sei se já familiarizou com foto-poesia, mas eu (pelo menos) fiquei com a imagem da garça pescando no esgoto na cabeça. Curiosamente aqui elas fogem constantemente do conforto dos parques e são vistas pelo porto disputando com os urubus a sobra dos pescados. Sempre acho isso muito foda, a natureza em sua simplicidade, em zona de guerra, território urbano, apenas querendo ser o que é, selvagem.
ResponderExcluir"J"
Pois é, no início, a minha poesia (pretensão do caralho, né?) era mais pictórica, talvez uma herança do tempo do primário, em que a "tia" dava uma gravura pra gente e pedia que fizéssemos uma "composição" a respeito.
ExcluirO poema - deve ser de 1990, 1991 - nasceu justamente de uma imagem. Há um rio que atravesso a caminho do trabalho,rio poluído, fedido, mas que, não obstante, resiste e insiste em sustentar grande quantidade de vida - cágados, tilápias, diversos tipos de algas e plantas.
E houve época em que todos os dias, de manhãzinha, eu atravessava e ela estava lá, uma bela garça branca maculando suas penas brancas na lama e no esgoto do rio.Vi-me nela.