Pequeno Conto Noturno (55)

Três e dezoito da manhã, Rubens vê no visor do caixa do supermercado 24h, e passa por ele com 4 latões de cerveja, para bem acabar a madrugada e se garantir umas precárias horas de sono conturbado.
Avista Valéria a uns 5 ou 6 caixas de distância do que está. Ela ainda não o viu. E Rubens pretende chegar até ela sem que isso aconteça, de surpresa, invisível. O que é fácil para ele.
Rubens tem um poder quase que mutante de se tornar invisível, de passar despercebido. Em parte - em uma pequena parte - porque não possui nenhum atributo físico que atraia olhares cobiçosos, Rubens é mesmo feio; em parte - em uma pequena parte - porque se traja sempre com cores neutras de padronagem lisa, preto, cinza, azul-marinho, marrom, meio que se camufla à triste paisagem, Rubens não veste outdoors vermelhos com inscrições douradas; mas, principalmente, Rubens deve seu dom de invisibilidade ao fato de que não é aquele cara que faz com que alguém, ao sair de casa para seus afazeres e atribulações diárias, pense : que puta saudade do Rubens, como seria bom encontrá-lo por acaso no supermercado, no banco, na padaria. Ninguém nunca está pensando em encontrar Rubens : fica fácil se tornar invisível. E ele prefere assim.
Cá entre nós, e que Rubens não nos ouça, ele acredita que prefere assim, mas não tem parâmetros para tal certeza. Nunca foi de outro modo.
Para Rubens, só existem dois tipos de amor, paixão ou como quer que as pessoas chamem a tais brutais reações químicas dos corpos. O amor que acontece, que se realiza, que constrói fortificações, ergue cidadelas com fossos e pontes levadiças em torno dos amantes; que depois são tomadas, invadidas e saqueadas pelos pequenos e insuportáveis defeitos de cada um, pela rotina e pelo tédio ("se esse amor, ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor, vai se gastar...") e, finalmente, capitulam feito impérios decadentes. E o amor que não acontece, que fica só na intenção, no terreno das ideias, incubado, juntando pó e mofo, fermentando, e que acaba por explodir em pútrida pústula, um furúnculo que vem a furo, um tubérculo no pulmão, uma flor negra de Pasteurella pestis, um sarcoma de Kaposi.
Do segundo tipo, o amor entre ele e Valéria.
O mercado oferece três tipos de bebida quente como cortesia aos seus fregueses, disponíveis em garrafas térmicas à saída do último caixa : uma com chá, outra com café sem açúcar e outra com café com açúcar. Rubens se serve de dois pequenos copos, um com açúcar e o outro sem, e com eles se aproxima de Valéria, que só dá por Rubens quando ele está bem às suas costas, à distância em que ele planejou mesmo que ela o percebesse, à distância que ele quis se fazer visível.
Nem Rubens nem Valéria dizem nada. Rubens estende, então, os dois braços em direção à Valéria, o café sem açúcar na mão esquerda, o com açúcar na direita, mostrando a ela suas opções.
- Qual você prefere? - pergunta Rubens, levantando ligeiramente a mão esquerda em relação à direita - Sem açúcar e com afeto, ou - baixando a mão esquerda e erguendo mais a direita - com açúcar e sem afeto?
Valéria, calada (Rubens não ouvirá a voz dela hoje), pega o café da mão direita de Rubens e volta a ensacar as suas compras.
Eles ainda não estão prontos para ter qualquer tipo de conversa. Rubens segue e entra de novo no mercado. Vai pegar mais dois latões. A madrugada será mais longa do que ele havia imaginado. Mesmo que o sol raie - e ele sempre raia, indiferente - em seu horário habitual.

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2 Comentários

  1. Os contos noturnos
    perpetuam-se na cabeça,
    modificam-se os turnos
    mas não há nada que
    esqueça.

    Rubens solitário
    vida triste que admiro
    o seu próprio inventário
    levando-o ao delírio,
    as mulheres insensíveis
    as mulheres não amam
    homens invisíveis.

    Rubens, Rubens,
    com a mente nas nuvens
    cria desejos diversos:
    desejos calados e solitários
    desejos puros e perversos.


    Uma pequena poesia para o sofrimento de Rubens. Aliás, contos noturnos cada vez melhores. Parabéns.

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