Corujex, as Corujas-Pavão

Sou visto muitas vezes como um sujeito ranzinza, conservador, mesmo reacionário. E tendo em vista a atual conjuntura do país, na qual ser moderno é ser idiota, indisciplinado, semianalfabeto, viciado em celulares, zumbi sem personalidade conectado dos pés à cabeça e ao cu a traquitanas eletrônicas, digo que tenho orgulho de que por um fóssil me tomem.
Sem que isso seja um impeditivo, aprecio certas manifestações artísticas de cunho marginal, underground, ou pelo menos certas manifestações artísticas que em suas origens, que lá em seus primórdios, tiveram um caráter marginal e underground, pois o mercado e o establishment rapidamente a tudo cooptam, mercantilizam e domesticam.
Gosto muito do grafite. Meu primeiro contato com ele se deu através das figuras de um dos pioneiros da arte no Brasil, o italiano Alex Vallauri, pintadas nas paredes do SESC - Ribeirão Preto; isso lá na saudosa década de 1980. Tanto que, ainda adolescente - prepotente, inocente, puro e besta - e animado pelas imagens de Vallauri, quis também produzir as minhas. Muni-me de cartolinas, papéis-cartão, papéis-carbono e estiletes para confeccionar meus moldes vazados : mais uma pretensão facilmente posta abaixo pela falta de talento.
Não há uma cena grafiteira significativa e consistente aqui em Ribeirão Preto. Não ao menos pelas ruas por onde ando, e eu, como não dirijo automotores, não tenho nem CNH, ando pra caralho. Conheço bem as ruas do centro, de uns quatro bairros adjacentes e de um mais periférico, e nada de grandes expoentes do grafite por seus muros. Aliás, não é só o grafite que carece de representantes : não há nenhuma cena cultural sólida, seja em que área for, na grande e burra Ribeirão. Culturas de destaque aqui são somente duas : a da cana-de-açúcar e a do rodeio e do sertanejo universitário. No mais, alguns grupelhos que organizam uns saraus aqui, umas mostras ali, uma exposição acolá; muito mais para fazer pose e encher a cara de birita que para qualquer outra coisa. Convivi um tempo nesse meio, sei do que falo, meninos.
Assim, sendo eu também um provinciano - se não em mentalidade, mas com certeza geográfico, pois morei praticamente toda a minha vida aqui, e ninguém consegue se elevar muito acima do meio em que vive -, jamais pude imaginar a magnitude que a arte do grafite atingiu nos grandes centros; magnitude não só em qualidade como também em dimensões físicas.
Estive na cidade de São Paulo há quatro meses. Na volta, pela tal avenida 23 de maio, surpreendi-me com o que vi, fiquei atônito e embasbacado. Sou um cínico, na acepção grega da palavra, da corrente filosófica fundada por Antístenes, que pregava a renúncia aos desejos criados pela civilização e denunciava as frivolidades da sociedade através do deboche e do escárnio por suas convenções. Por isso, quando digo que algo me surpreendeu é porque me surpreendeu mesmo!
De uma hora para a outra, a paisagem dura e claustrofóbica do concreto dos paredões e dos viadutos se transfigurou. O cinza e o fuliginoso foram soterrados por uma avalanche de arte urbana, o grafite. Não esse grafite que, acredito, a maioria de nós esteja acostumada a ver : muito mais inscrições tribais que arte, muito mais toscos desenhos rupestres que produto verdadeiramente pensado e elaborado, e a ocupar poucos metros quadrados aqui e ali.
Nada disso. Paredões de dezenas de metros de comprimento por cinco, seis, dez metros de altura feitos em tela, e com qualidade técnica e criativa diretamente proporcional às dimensões físicas, se não, muitas vezes, superando-as. Não tenho como descrever. As tais mil palavras que, diz o populacho, equivalem a uma imagem, nesse caso, se revelam ainda mais anêmicas e ineficientes. Só mesmo vendo. A quem interessar um vislumbre do que digo, pesquise por um grafiteiro chamado Kobra.
O grafite aqui na cidade é pobre em quantidade e paupérrimo em qualidade. Resume-se ao que eu já disse, rabiscos e pichações, letras umas mais esticadas e pontiagudas, outras mais atarracadas e gorduchas, outras disformes e inintelígiveis, inscrições muito parecidas com a época em que o ser humano não havia desenvolvido efetivamente a linguagem escrita - nossa maior tecnologia.
Há, não obstante e ainda bem, uma doce exceção a esse primitivismo e rusticidade. De uns tempos para cá, alguns muros da cidade - e tenho a sorte de passar por três deles a caminho do trabalho - começaram a servir de ninhos para coloridas e graciosas corujinhas, assinadas por Lola.
À cata de imagens das simpáticas corujinhas para colocar nessa postagem, descobri que Lola é tatuadora de profissão e, ao que me pareceu, nas horas vagas enfeita a cidade com suas Corujex, nome dado por ela aos seus rebentos.
Mas a impressão que tenho, que as Corujex me passam, é que são muito mais que simplesmente corujas que caíram numa lata de tinta, ou em várias. As Corujex (aqui assumo, por conta e risco, que Corujex tenha plural invariável, pesquisei pra caralho sobre plural de palavras terminadas em "x" e nada de conclusivo encontrei) são o resultado do cruzamento entre uma coruja e um pavão.
As Corujex, as corujas-pavão, são uma mistura de mau-agouro com festa de aniversário. São confluências do luto com o carnaval. Híbridos do breu com a aurora. Transgênicos da Lua com o arco-íris.
Têm umas que até se arriscam de ponta-cabeça. Um quê de morcego, talvez?

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5 Comentários

  1. Muito, muito legal. Em BH tem um sujeito que é genial em expressões faciais. Se quiser dar uma olhada, pegue o link e olhe a terceira imagem. Foi feita em um muro de arrimo na rua Niquelina com Av. Mem de Sá. Dê uma olhada. https://artimpacto.wordpress.com/diario-a-bordo/

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  2. Estive contando quantas corujex eu via esse ano em Ribeirão Preto em lugares diferentes, ao todo, e com meu costume de caminhar, encontrei 33 em muros diferentes.
    São fantásticas!
    Um abraço, Gianndre Roberto, como sempre não loguei.

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