Carla Perez, Xandy e o É o Tchan do Caetano (Ou : Cada País Tem o John e a Yoko Que Merece)

Se tenho mesmo real e relativa destreza com as palavras, ou se o que tive ao longo da vida foram tão somente pontuais e felizes momentos ao burilá-las, ou seja, se dei sorte com elas de vez em quando, eu não sei.
Sei - lembro-me - que sempre me saí com notas muito boas em composição, lá no curso primário. Sim, sou velho, meninas e meninos. No meu tempo de calças curtas, era composição, e não redação, que, aliás, hoje, chama-se produção de texto - um nome mais pomposo para uma geração de analfabetos. Sim, sou do tempo que aluno tinha que decorar tabuada, tempos verbais, datas cívicas e seus significados, capitais dos estados, os famigerados afluentes da margem esquerda do Amazonas e fazer composição.
Geralmente, um desenho, uma foto ou gravura eram dados a nós e nos cabia versar sobre. Lembro-me sobretudo de minhas terceira e quarta séries primárias, com a Dona Rute e a Dona Aparecida, respectivamente, muito elogiando minhas composições, meus quase inexistentes erros ortográficos. Inclusive, muitos textos do Marreta nascem assim, a partir de uma imagem, de uma composição.
Uma vez, na quarta série, uma composição minha feita a partir de uma ilustração do livro Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato, causou furor. Dona Aparecida fez cópias dela e passou para as professoras das outras classes, para que elas usassem como exemplo para os alunos mais novos. E eu ainda ganhei um estojo com 12 canetinhas hidrográficas Silvapen da Dona Aparecida, à guisa de troféu. Era uma preciosidade inestimável, o estojo de 12 canetinhas Silvapen; o de 6 canetinhas, até havia quem o tivesse, mas o de 12... Acho que a Dona Aparecida nunca soube que, coincidentemente, eu lera o livro coisa de uma semana antes dela ter nos dado tal encargo, e que isso pode ter influenciado na qualidade da minha redação. Eu, pelo menos, nunca contei pra ninguém.
Vem-me também à memória o seo Valdir, meu professor de português da oitava série do ginasial; hoje, chamado de ensino fundamental. Ele, sério, sisudo e muito comprometido com seu trabalho, foi quem nos iniciou nas redações voltadas para os concursos vestibulares, quem começou a nos treinar em suas principais modalidades, a descrição, a narração e a dissertação. Não tínhamos mais figuras para nos inspirar, o tema vinha na forma de uma frase, um lema, uma manchete de jornal. Mas minha mente, treinada no campo minado do fantasioso, não tava nem aí, misturava alhos com bugalhos, raramente se atinha ao tipo de redação pedido. Em sua mesa, em baixo tom de voz, seo Valdir dizia que gostava muito de algumas de minhas redações, mas que ainda assim era forçado a lhes dar notas baixas, ou eu nunca aprenderia a diferenciar um estilo do outro. Lembro-me de uma redação, feita a partir de uma notícia de jornal, na qual o Seo Valdir me deu duas notas; veio assim escrito no verso da folha : nota do Valdir : "A"; nota do professor Valdir : "E". Racionalizei : ("A"+"E")/2 = "C", eu tava na média, tava bom pra mim, e eu ainda havia escrito a estória que queria - estranha época em que se faziam médias aritméticas de letras.
Vestibular para o curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia, tema da redação, Felicidade, minha nota : 9,0. O que me fez começar a pensar que eu tinha um certo jeito para a ficção. Passei no vestibular, frequentei um semestre e abandonei, até hoje nem sei por quê. Meio ano de cursinho pré-vestibular, professor Degrande, um ás do métier, deu-me nota 8,0 em uma redação sobre revoluções e revolucionários; a um canto da sala me falou que poderia ter me dado 10,0, que só não o fizera para que eu não ficasse muito cheio de mim e achasse que não precisava treinar mais o meu texto.
Pois minha memória os evoca, caros, diletos e dedicados mestres. Para um pronunciamento, uma anunciação, e também uma tentativa de escusas : enganei-vos, caros mestres! Sem intenção, inadvertidamente, mas enganei-vos! Sou um embuste. Uma fraude, uma burla. E assumo toda a culpa pelo logro. De alguma forma, obnubilei suas apuradas percepções avaliativas, passei um conto do vigário em suas sólidas bagagens e formações acadêmicas. Mea culpa, caros mestres, mea maxima culpa.
Dona Rute : devolvo-lhe todo o rubro e nutritivo sangue de sua caneta vermelha docente e magistérica, com o qual grafou por tantas vezes a nota 100 sobre minhas ardilosas linhas; Dona Aparecida : se eu ainda as possuísse, as 12 canetinhas Silvapen, as tornaria no santo principal do altar à minha própria vergonha; Seo Valdir : eu não deveria ter me contentado com o "A" do Valdir, e, Valdir, sem desprezar a camaradagem, eu deveria ter ido em busca também do "A" do Seo Valdir; Degrande : vim, vi e não revolucionei porra nenhuma!
O motivo, caros mestres, dessa minha confissão, dessa minha retratação, é uma foto.
Ontem, uma foto publicada nas principais mídias impressas e virtuais do pais me estarreceu! Imediatamente, quis escrever sobre ela, fazer, portanto, uma composição. Até como forma de me livrar de seu fantasma. Transformar o pictórico absurdo e surreal da foto em palavras e linhas mais familiares a mim. Verter pixels em letras. Torná-la em demônio conhecido e exorcizá-la.
Na hora, nada me veio à cabeça. Creditei o "branco" ao impacto, ao atordoo causado pela foto. Fui, então, cuidar um pouco da vida, esperar a poeira baixar, a tempestade amainar um pouco. Comecei a tomar minha cerveja, brinquei um pouco com o filho e a esposa, assisti a alguns enlatados americanos na tv a cabo, diverti-me com A Praça é Nossa. Mas a foto não me abandonava, diferente das ideias para escrever sobre ela.
Filho dormiu, esposa dormiu, as duas gatas dormiram. Era a minha hora. Era agora ou nunca. A hora de mostrar do que verdadeiramente eu era feito. E todas as condições estavam a meu favor. A sacada escura, o tanque bem abastecido de cerveja, o meu inseparável caderninho de anotações e minha caneta bic verde, o céu estrelado da madrugada. Acendi um incenso de baunilha. Sentei-me, respirei fundo, compenetrei-me. E nada! Relaxei, acabei mais uma latinha e abri outra. E nada. E nada. E nada. E nada. Pelas duas horas seguintes. Era impossível!
Eis a foto, caros mestres. Eis o atestado de óbito de meu pretenso talento. Eis a minha Nêmesis.
Carla Perez, Xandy e o é o tchan do Caetano. Isso sem falar no elegante toque da meia preta até quase o joelho.
Mas não me dei por vencido assim tão fácil, caros mestres. Devia essa resistência, essa última batalha a mim mesmo e a vocês. Entornei a última lata e deixei o assunto para o outro dia, hoje. Iludi-me a pensar que os três dias encarrilhados de pouco sono, que meu trem descarrilado rumo à estação de Morpheus, eram os responsáveis pela minha falta de palavras ante o visto.
Cuidei do filho, fomos à feira comer pastel, fiz a feira, o almoço, limpei a casa. E a foto a me assombrar. E as palavras a desertar. E diáspora verbal a se confirmar.
As ideias sempre me surgem na forma de palavras, nunca de imagens. Aliás, pode até ser um pouco de preconceito, eu um pouco que desprezo as imagens - menos as de mulher pelada -, o pictórico. Para mim, a imagem é a linguagem do neanderthal, do homem antes da escrita, do pré-homem, e também a linguagem dos ícones dos computadores, tablets e celulares, a linguagem do analfabeto moderno. Pois - vingança de algum deus grego, talvez da musa Calíope, a quem eu tanto tenho preterido e prevaricado - a única ideia que me surgiu para dizer, comentar sobre e expurgar o é o tchan do Caetano foi uma outra imagem. E perdoem-me por apresentá-la aqui, caros mestres, por tornar essa postagem em um remake daquele seriado antigo, A Galeria do Terror.
Até então, o beatle e a buceta que destruiu os Beatles protagonizavam a foto mais bizarra e de mau gosto do pop mundial. Pois foram ultrapassados, tornados em obsoletos. Destronados por Carla Perez, Xandy e, principalmente, pelo o é o tchan rendido do Caetano. Cada país tem o John e a Yoko que merece!

Em tempo e sem nenhuma sacanagem : artisticamente falando, Caetano Veloso é imensamente superior a John Lennon ou a qualquer outro beatle, ô conjuntinho superestimado. Até hoje não entendo o culto aos tais de Liverpool.

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5 Comentários

  1. Vou começar pelo final, onde você dá uma escamada nos Beatles, meus ídolos máximos, mas não vejo problema nenhum nisso. O John era mesmo um mala sem alça. O que penso sobre esse conjunto (era assim que se falava na minha adolescência) é que, tendo começado quase (eu disse quase) como uma simples boy band, seus integrantes foram inovadores no estilo que abraçaram, o rock, uma área que tinha pouca sofisticação musical e instrumental. Tirando o gente boa Ringo, foi uma banda que contou com a sorte de ter três ótimos compositores, um arranjador genial (George Martin) e, no início, um marqueteiro competente (Brian Epstein). Como não sei inglês, não posso avaliar as letras, mas a música era (ou é) boa demais. E o melhor disco de todos é "Abbey Road".
    Quanto ao “é o tchan” do Caetano Veloso, estopim do texto citado, acredito que ele (Caetano) e o Chico Buarque são letristas insuperáveis, cujo defeito maior é escrever em português, uma língua periférica do mundo ocidental. Se fossem ingleses ou americanos, teriam arrasado no mundo todo.
    O meio do texto mostra mostrou duas de suas características básicas, que são a cultura e o domínio vocabular.
    O início do texto é a parte que mais gostei e me fez entender melhor por que as pessoas gostam mais de meus posts com memórias e lembranças. Falando de sua infância e juventude, às voltas com composições e redações elogiadas pelos mestres, falou também um pouco de mim (mas nunca ganhei estojo de canetinhas) e de mais um tanto de gente boa. Fico pensando que, apesar de gostar de textos ficcionais e poesias, acho que você dá para um bom memorialista!

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    1. Engraçado isso. Enquanto escrevia o texto, eu sabia exatamente as partes de que você iria gostar - e acertei - e sabia também que você ia ficar meio puto com o negócio dos Beatles.
      Sobre o que disse do Caetano e do Chico escreverem em inglês, não sei não. Como você, eu também não entendo picas de inglês, mas me parece que língua portuguesa - bela e inculta, como diz o grande Pasquale - é muito mais rica que a inglesa, em substantivos, adjetivos etc. Me parece - posso estar errado, claro - que o Caetano e o Chico talvez ficassem um pouco limitados pelo inglês.
      Obrigado pelo elogio quanto ao memorialista, só espero que não haja nenhum duplo sentido nesse "dá" para um bom memorialista.
      abraço.

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    2. Você fala que eu sou o rei dos trocadilhos mas esse "dá" escapou-se-me (olha a última flor do Lácio aí"). O que eu quis dizer do lance do Chico e do Caetano é que o inglês, por ser uma língua conhecida e falada por trocentos milhões de pessoas, faria a fama (e a fortuna) dos dois, justamente pela genialidade de ambos. É óbvio também que o inglês precisaria ser a língua nativa dos dois. Não tenho formação para discernir qual idioma é melhor. O que já notei é que os americanos tem uma "sem cerimônia" total para transformar ruídos, sons e neologismos em verbos, o que é muito legal. O último de que fiquei sabendo é "to google", cujo significado e utilidade não consigo imaginar. Talvez seja "pesquisar no Google", sei lá.

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  2. O marreta dá para um bom memorialista, para um bom escritor, dá para um bom crítico, ou seja, ele dá pra todo mundo, maldito marreta.
    Só falta dar pra mim.
    Ex-viado.

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