Curioso. Quase nenhum bêbado admite o vômito. Acho que consideram uma espécie de fraqueza, uma fraqueza dentro de outra fraqueza, que é o vício. Talvez funcione assim, já que é pra ter um vício, que sejamos resistentes, firmes nesse vício. Se bem que um outro conhecido diz sempre que não existe fraqueza nenhuma em ser um bêbado. É preciso ser forte, ter talento pra ser bêbado. Só sei que o cara continuou:
“Então, eu não preciso pôr a mão em ninguém pra saber se esse alguém está armado.”
“Sei...”, eu perguntei.
“Eu tenho olhos de raios-X” , disse o cara e pediu mais uma garrafa de vinho.
Bares daquele naipe abrigam muita gente anômala, atraem a fauna mais diversa. Já bebi com uns tipos bem esdrúxulos lá no Durval.
Como a dona que sempre ia ao banheiro quando sua cerveja chegava à metade da lata e completava. Completava com urina. Urinoterapia, ela me explicou, uma maravilha para pele, queda de cabelos, disposição física, reposição hormonal. Era uma dona passada dos trinta, não entrada nos quarenta, estava em forma muito boa e parecia que tava afim de dar pra mim. Mas com o andar da conversa fui perdendo o apetite nela. Nem sei direito o porquê. Acredito que aquilo dela tomar urina possa ter me desestimulado um pouco.
Também o cara – semblante de chinês do Paraguai- que se dizia descendente direto de Gengis Khan. Andava com uma pele de carneiro no bolso de trás da calça, tinha uns rabiscos nessa pele, a árvore genealógica dos mongóis. Apontava um dos quadradinhos e dizia ser o de Gengis Khan, apontava outro bem abaixo e dizia ser ele próprio. Alisava os bigodes para baixo e batia com o copo na balcão, em desafio pra quem o contrariasse.
Sem entrar em detalhes do velho com brinco de argola de ouro e tapa-olho de corsário (o de pirata era diferente, ele sempre frisava), ou o boxeador vegetariano (não posso ver sangue, justificava).
Uma dona que bebe urina, um tataraneto do Gengis Khan... Resolvi que um cara com olhos de raios-X não era nada absurdo. Estava dentro do padrão. Continuei escutando.
“E não é o primeiro lugar que me recusam, não. Já me ofereci pra diversos outros serviços. Procurei hospitais. Podia trabalhar na emergência, podia ver logo se havia algum osso fraturado, mais rápido e sem necessidade de máquinas. O enfermeiro-chefe me perguntou ‘e a chapa do raio-X? Você solta pelo cu?’; ofereci-me pra bancos, pra ficar ao lado das portas rotatórias da entrada; ofereci-me em aeroportos pra vistoriar bagagens. Nada. Sempre respostas engraçadinhas do tipo da do enfermeiro-chefe. E aqui nesse bar, o dono nem me deixou falar”, e uma entornada inaugural na nova garrafa.
“Considere-se com sorte do Durval não ter te escutado.”
“Você deve estar pensando como todo mundo, que eu tô reclamando à toa, que ter olhos de raios-X é uma benção, ver mulheres peladas, certo?”
“E não é bom?”, eu seguindo a conversa como se caras com olhos de raios-X fossem a coisa mais normal do mundo.
“Errado.”, e outra bela talagada. “Eu não vejo ninguém pelado, nem bundinhas, nem peitinhos, nem bucetas. Nada.”
“Mas não tem olhos de raios-X?”
“Claro que tenho. Por que todo mundo parece idiota? Você já viu um par de peitos numa chapa de raios-X? Não, né? Só viu ossos, certo? Pois, então. É assim que vejo todo mundo. Só esqueletos dançantes”, e o vinho desceu mais dois dedos goela abaixo.
Puta que o pariu. Nunca tinha pensado por esse ângulo. A tristeza na voz do cara bonito começava a ter sentido. Nunca ter visto um peitinho...
“Como é isso, seu olhos emitem raios-X?”
“Não. Nem precisa se preocupar, eu não estou te irradiando, seus testículos estão seguros. Nenhum olho emite nada, nenhum tipo de comprimento de onda, olhos são receptores. Os comuns captam o espectro do visível, as sete cores do arco-íris, lembra da escola?”
Eu não lembrava; deixei ele seguir.
“Alguns animais, como os pernilongos e as cobras peçonhentas, captam o infravermelho, enxergam o calor dos corpos de sangue quente; outros ainda captam ultravioleta, as abelhas. Meus olhos são receptores de raios-X. Onde os raios-X atravessam, eu vejo um clarão, um fundo azul-fosforescente; e o que eles não atravessam é o que, na verdade, por contraste, eu vejo. E que basicamente se resume a ossos e estruturas metálicas.”
“E não dá pra aprender a controlar ?, sei lá, modular essa recepção, enxergar em camadas, não sei...”
“De novo a idéia do atravessar a roupa e parar na carne... Não, não dá. Não há modulações, os raios-X atravessam por inteiro ou não atravessam nada. Só o que vejo nas ruas são esqueletos balançantes, de pessoas e animais.”
Que merda. Imagine só ver um esqueleto voando, ou pulando de um muro a outro.
“E as plantas?”
“As árvores mais antigas, de mais grossos caules, eu sou capaz de perceber, mas não suas folhas ou flores.”
Puta que pariu. Explicada a tristeza na voz do cara bonito. O cara nunca tinha visto uma flor na vida. Se é que um sacana de um deus fez isso tudo, uma única inveja eu tenho do safado: o cara fabrica flores como ninguém.
Continuamos bebendo os dois, uns bons minutos calados.
(continua)
(continua)
9 Comentários
Continua?
ResponderExcluir"J"
Então...esses seus contos estão mais para coisa de boiola. Daqui a pouco Ele dará as caras por aqui, o seu amigo ex-baitola. Mudando de assunto...e o terno, já colocou no sol? Leitinho.
ResponderExcluirMestre Azarão, sou eu de novo o ex-boiola. Acabo de chegar do culto das sextas feiras e como sempre faço antes de dormir, leio sua palavras de sabedoria. Minhas duas leituras obrigatórias do dia são as palavras do nosso senhor Jesus Cristo e as histórias de vida do seu blog.
ResponderExcluirHoje minha alegria foi dobrada ao ver que seus amigos sentem a minha falta por aqui. Esse Leitinho é aquele seu primo que você fala sempre, né? Ele também tem um blog, que o mestre já citou aqui tb. Espero que não fique enciumado, mestre, mas eu vejo as vezes o blog do seu primo, gosto das fotos e das palavras de sabedoria que ele coloca lá e agora saber que ele se lembra de mim reconforta minha alma sempre em comichão. Vi lá uma foto de rosto dele e com o perdão do senhor Jesus digo que ele faz o meu tipo, tem um ar respeitoso, calvo, parece ter a barba bem cerrada. Me diga mestre, ele tem o corpo bem peludo? Era o tipo que eu mais gostava nos meus tempos de pecador.
Mestre, agora vou fazer minhas orações finais e ir me deitar. Acho que hoje minha esposa vai querer que eu cumpra com minhas obrigações de marido e eu vou atendê-la, pensando no mestre e com fé no senhor Jesus.
Mestre, tocando num assunto antigo, você já adquiriu o seu pau de selfie?
Sim, caro amigo que tanto luta bravamente contra o demônio da argola piscante, é o meu primo de quem tanto falo por aqui. E claro que não tenho o menor ciúmes de você visitar o blog dele. Aliás, acredito que lá você encontre maior alento para sua "alma sempre em comichão" (cu mudou de nome?) do que aqui. Meu primo é um cara muito mais compreensível, muito mais sensível que eu, ele lê Rubem Alves, anda a fazer psicologias educacionais etc. Sem dúvida o Química Mix é um confessionário, ou um divã se preferir, muito mais acolhedor para as suas angústias que o Marreta. Quanto à sua pergunta, meu primo não é nenhum Tony Ramos no quesito pilosidade, mas os têm em quantidade suficiente para você, ao estilo Wando, se enrolar em seus cabelos.
ExcluirQuanto ao pau de selfie, você sabe muito bem onde colocá-lo; se é que já não fez.
E o pastor da sua igreja? Já resolveu soltar a rosca pra ele?
abraço
Ah, esqueci. Comece a comentar no blog do Leitinho, ele gosta muito de responder a cada comentário.
ExcluirAhah...cada um colhe aquilo que planta...rsrs.
ResponderExcluirPoisé, tomara que ele passe a aparecer lá no Quíimica Mix!!!
ExcluirSeu blog é muito boa diversão. Ri muito quando li sua pergunta (cu mudou de nome?). Sei não, Marreta, mas esse "ex-boiola" só pode ser gozação. Se for real, deve ser muito louco. Nesse caso, poderia até usar um título de marquês. Marquês de Rabicó.
ResponderExcluirEu também acho que é gozação de um amigo meu, mas, enquanto isso, eu também me divirto.
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