Pequeno Conto Noturno (51)

- Tava tudo igualzinho, né, Rubens? - pergunta/afirma Janaína.
- Muito parecido - começa Rubens -, e o que faltava ou estava a mais, a memória completou ou suprimiu.
- Lá vem você... tava tudo igualzinho, sim. As velhas mesas de fórmica vermelha quebradas nos cantos, o mesmo balcão de granito embaciado, a mesma fumaça e o cheiro de cigarro, embora há mais de década seja proibido fumar em locais fechados, a banda com os mesmos integrantes e até o velho Péricles no balcão, grosseirão como sempre, e parecem que nem envelheceram, o Péricles deve tá com o quê, uns 60 anos ou mais, né?
- Envelheceram, sim. Assim como nós. Não envelheceram foram as lembranças que temos deles, e de nós mesmos. De novo, Janaína, é a nossa memória a se entorpecer do passado, sua droga predileta, a memória nos cutuca para que busquemos o passado como o cérebro de um viciado o põe em síndrome de abstinência para que ele busque o álcool, a cafeína, a maconha etc.
- Tá dizendo que nossa memória é que molda o mundo ao nosso redor, é isso?
- A partir de uma certa idade, creio que sim. A memória se edifica em nossa confortável e particular caverna de Platão, em nossa esverdeada e asséptica Matrix, onde somos nossos próprios escolhidos.
- Se vai querer continuar com essa bobagem, vai seguir sozinho com ela... parecia mesmo, sabe, Rubens, um daqueles episódios daquele seriado antigo, da década de 60, eu acho, em preto e branco, em que o cara tava, sei lá, dirigindo por uma estrada escura e erma, à noite, e o carro dava defeito, aí ele saía para procurar ajuda, se enveredava por uma passagem no meio do mato e dava numa cidadezinha escondida, mas o que ele descobria logo em seguida é que tinha atravessado uma barreira dimensional ou coisa assim e estava de volta ao passado, ao local de sua infância, sei lá, lembra desse seriado, Rubens, como era mesmo o nome?
- The Twilight Zone, traduzido por aqui como Além da Imaginação.
- Isso mesmo! Além da Imaginação! Não tem nada dessas suas baboseiras de que não temos memória, de quem é a memória que nos têm, não tem merda nenhuma disso, o que aconteceu foi que atravessamos uma dessas barreiras dimensionais hoje, fomos personagens de um episódio do Além da Imaginação.
- Hum, também gosto dessa sua interpretação, mais poética que a minha, sobre a memória, acho que você até merece uma trepadinha extra por causa disso.
- Promete?
- Vamos ver o que esse café consegue fazer por mim...
- Exatamente. O café. E isso aqui agora, Rubens? A mesma padaria aberta às quatro da manhã, o mesmo café ao fim da madrugada. A mesma mesa, no mesmo canto, a mesma visão da rua, da esquina com o velho e barulhento semáforo e sua quase invisível faixa de pedestres. A mesma estufa de vidro com os pães de queijo, a mesma máquina de café expresso, tudo no mesmo lugar, com o mesmo cheiro, o mesmo gosto.
Rubens tira as lentes do pragmatismo dos olhos, olha ao redor e se vê obrigado a concordar com Janaína.
- Parecem os velhos tempos, né, Rubens?
- Sim, parecem...
E como nos velhos tempos, seus dedos se entrelaçam, dançam um improvisado tango sobre a toalha quadriculada da mesa.
- Mas só parecem - conclui/estraga tudo Rubens.
- Sei o que está dizendo... que logo esse episódio de Além da Imaginação vai acabar, não é? Lembro que eles eram curtinhos, coisa de vinte minutos, meia hora. Logo começarão a subir os letreiros com os créditos finais, é isso, não é?
- E a Zona do Crepúsculo se fechará mais uma vez - Rubens terminando o café.
Ele pega as duas xícaras vazias e se levanta
- Mais café?
- E por que não?

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3 Comentários

  1. Meu caro amigo, agora vc subiu o nível. Muito bom.
    "J"

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  2. Adorei esse! Mto bom! Azarão, fiquei sabendo q vc tem um terno, exalando odor de naftalina....que tal, de vez em qd, expô-lo ao sol....rsrsrs. Qto à foto, ela não era tão velha e vc....era um dos melhores da mesa, sob o meu ponto de vista! Não te sacanearam, não!

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    1. Não é bem um terno, é um sobretudo, estilo John Constantine, Bruce Wayne. Agradeço o elogio de um ser um dos melhores da mesa. Pena que seja daquela mesa.
      Um era japonês (o Miguel), o outro, tá barrigudo, cabelo branco e óculos fundo de garrafa (o Marcellão), e o outro, barrigudo e quase careca (meu estimado primo Leitinho). Só faltava eu ser o pior.
      Pããããta que o pariu!!!!

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