O Cara dos Olhos de Raios-X (parte final)

As duas amigas chegaram de novo até o balcão e estavam olhando pro cara. As duas. O cara nem se tocava disso. Pegaram suas bebidas e continuaram a olhar pro cara, lá da mesa delas. 
“Deve ser foda mesmo”, tornei à conversa. “Tenho uma coisa pra te alegrar. Tá vendo aquelas duas ali na mesa à esquerda?, estão olhando pra você, e uma delas é bem gostosa."
O cara nem se deu ao trabalho de virar a cara. 
“Gostosa? Você é quem está dizendo. Eu só vejo ossos e obturações de amálgama de mercúrio. E supondo que a gostosa é a mais alta, correto?” 
“Ééé, essa mesma.” 
“Ela tem oito restaurações, cinco na arcada superior e três na inferior. Também tem uma solda de fratura horrível no antebraço direito.” 
Calei minha boca com cerveja. Como animar um cara desses? Um cara cujo padrão de beleza se baseava em número de obturações e calos ósseos? 
“A mais baixa”, seguiu o cara bonito e melancólico, “parece-me muito mais atraente. Nenhuma obturação, a não ser que seja de resina, e ossos intactos.” 
Resolvi entrar na do cara. 
“Legal. Faz assim, então: você vai lá, chama as duas até aqui e passa uma conversa na mais baixa. Eu aproveito e vou tentando algo com a mais feia, a mais alta.” Eu nem bem conhecia e já estava tentando sacanear o cara. Mas sábado à noite é terra de ninguém, é terra sem pecado. 
“Não vai dar, não”, sentenciou o cara. E selou o NÃO mais categórico que já ouvi com mais uma talagada. 
O cara já havia entrado pro meu álbum de recortes. Tá certo que não havia aguentado os 40 minutos iniciais estipulados por mim, mas vomitou e estava lá, firme, bebendo tudo de novo. Quando vomito, eu estou acabado, a noite já era pra mim. O cara delicado tinha mais fibra que eu. 
“Por que não? Qual o problema?” 
“O problema”, seguiu numa voz ainda mais triste, “é que a mais baixa está com um bolo fecal enorme parado nos intestinos.” 
“Como é que é?”, eu meio furioso, puto da vida. 
Essa não. Eu tava lá, na maior boa vontade, ouvindo as lamúrias do cara e ele diz que não vai cantar a mais feinha porque parece que ela não cagou hoje? Por pouco não esmurrei o cara. 
“Sim, é isso mesmo. Ela tá com um bom tanto de merda no intestino, ela deve ter comido muita carne ou outro alimento rico em ferro, quando isso acontece, eu também vejo as merdas das pessoas.” 
Decidi que compreensão, benevolência e piedade tinham limites. 
“Tá certo, seu loki. Fica aí.” E deixei o cara bonito e triste para trás, no seu mundo fosforescente de esqueletos dançantes, esqueletos com bolas de merda dentro. O cara ficou lá, triste, olhando pro granito do balcão e vendo sabe-se lá o quê. Depois, até pensei que havia sido muito duro com o cara, mas aí já era tarde. E era madrugada de sábado, certo? 
Deixei o cara e resolvi tentar a sorte com as duas. 
Evoquei a técnica daquele meu amigo e ataquei a pichorra. Gastei com ela uns bons 20 minutos. Nada. 
Dei uma disfarçada, fui até o balcão, paguei mais uma cerveja e voltei pras duas. Flanqueei a mais bonita. 
Acredito que gastei muito bem os 40 segundos de atenção que ela me deu. 
Entornei o resto da cerveja e voltei pra casa. 
A minha conversa funciona muito melhor com os loucos. 
Definitivamente.

Postar um comentário

2 Comentários

  1. Respostas
    1. Ria da desgraça alheia, ria.
      Pois é, fecharam-se as portas, sozinho, de novo, tive que sair... Sair de que jeito, se nem sei o rumo para onde vou?

      Excluir