O Cara dos Olhos de Raios-X (parte 1)

O cara entornou, no gargalo, os últimos três ou quatro goles da garrafa verde-barro de vinho. Balançou-a ao ar , vazia, lenço que se acena do navio partidouro, para o balconista, que a substituiu por outra, cheia, já sem a rolha. Pôs também um copo adjunto. O cara recusou o copo. Deu mais duas ou três talagadas das decentes, e só então achegou-se a mim. Se o cara aguentasse mais 40 minutos sem vomitar, ele teria meu respeito. 
“Lugarzinho desanimado esse, hein?”, numa voz de tristeza tão pastosa que me fez virar para encará-lo. Tristeza tão lamacenta que me fez abandonar o reduto da visão periférica em que me abrigo quando estou nesse bar, quando esses tipos vêm falar comigo. 
Bares daquele tipo atraem esquisitos dos mais sortidos – inclusive a mim – e nunca se deve fazer contato visual direto com um louco, prudente mantê-los sempre em soslaio. Mas a impressão de alguma coisa perdida na voz do cara me comoveu. 
“Éééé....”, eu respondi. Estava num dia de bom humor. 
Um cara bonito, bem-ajambrado, vestido direitinho, como se a mãe o tivesse feito por ele. E acho que era essa boa aparência o discrepante da tristeza em sua voz. O que me fez olhar pro cara. 
“É sempre assim, paradão?” 
“Algumas noites são melhores, outras são piores. O problema é que nunca se sabe de que tipo elas vão ser; até que se acabem.”, eu, tentando não estender muito a conversa. 
Mas sabia que a conversa iria se estender. Fiz contato visual com o cara. Agora era tarde. Agora era problema meu. 
Agora, eu já havia descoberto de que tipo seria aquela noite! 
“Eu nunca tinha vindo num lugar assim, antes.”, e deu mais uma golada capaz de tontear Baco. O cara só tinha aguentado ainda 6 minutos dos quarenta, crédito dado por mim para dar-lhe meu respeito. 
Alguma coisa não estava certa naquele cara. Com uma aparência daquelas, o cara parecia mesmo ter estirpe, o cara deveria era estar onde as coisas acontecem, fazendo o favor de levar alguma mal-amada, balzaquiana ou mais, para a cama, deveria era estar lhe passando seu cacete duro ao fim da noite. 
Porra!!! Era uma noite de sábado, afinal de contas. 
Noite dos caras bonitos praticarem suas boas ações com uma feinha sortuda; noite das mulheres bonitas nunca praticarem suas boas ações com os caras feios sem sorte. 
Mas o cara teimava em estar naquele bar, puxando conversa comigo, entornando vinho, destoando de tudo, da iluminação, da atmosfera, da sonoridade, dos menos agraciados fisicamente. O cara era uma mosca branca naquele depósito de uma ou quase duas dúzias de almas penadas – ou penando – que ali se amontoavam. 
“Parece um lugar de gente meio perdida, né? De gente que, meio assim, sabe?, não tem pra onde ir.”, o cara continuou, um pouco que dando seqüência ao que eu estava pensando. 
“Ninguém tem pra onde ir, amigo.”, e tomei um longo gole da cerveja recém-chegada, geladíssima, para lubrificar a garganta. Tinha resolvido encarar o papo. E segui: 
“Ninguém tem para onde ir. Só que a maioria é tão sortuda que nem se apercebe disso.” 
“É uma teoria interessante.”, disse o cara. 
“Não é uma teoria.”, disse eu. 
Naquele exato momento, eu tinha fodido tudo. Eu e minha boca, eu e minhas teorias. 
Minhas teorias são danadas para atrair esses doidos. Ainda se, vez por outra, seduzissem uma loira peituda... 
“Acho que você tá certo. De qualquer forma, a freqüência normal daqui deve ser bem baixa, mesmo. Foi o que o dono alegou para recusar o emprego que vim pedir.” 
O cara teve coragem de pedir emprego pro Durval. Mesmo que o cara vomitasse naquele instante, 14 minutos dos quarenta de crédito que lhe dei, ainda teria infinito respeito por ele. Por sua loucura. Não houve coragem em seu ato. Não há coragem quando não se sabe o perigo a que está sujeito. Não. Definitivamente, não. A coragem nunca passou por esse bar. Aqui só há a loucura. Bendita seja! 
“Ele me disse”, continuou o cara bonito e triste, “que o movimento não comporta um empregado na função à qual me ofereci.”, e mais uma bela entornada na garrafa. Uns 18 minutos, dos quarenta para que o cara adentrasse meu hall da fama. 
“O Durval disse isso? “não comporta um empregado na sua função”? “ 
“Na verdade, ele disse que não precisava de mais um porra para explorar o que ele ganha aqui.” 
O cara parou e deu mais uma boa duma fungada, reduziu a garrafa a um quarto. 
Fiquei olhando e tentando descobrir que tipo de trabalho o cara poderia exercer ali. Nada me ocorreu. Resolvi nada perguntar. 
Não adiantou, o cara triste e bonito queria – precisava mesmo – falar. 
“Vim me oferecer para a função de segurança. O melhor que qualquer estabelecimento pode ter ou querer.”!
(continua...)

Postar um comentário

1 Comentários

  1. Que boiolagem é essa de parte 1? E eu? Faço o quê agora? rsrsrs Fora isso, "não há coragem quando não se sabe o perigo a que está sujeito"- mto bom!
    "J"

    ResponderExcluir