A Proibição do Poeta

O poeta está no palco, no tablado de madeira sem brilho, rachado e empenado do velho Bar Solfieri. Não tem mais que um palmo de altura, o tablado; não mais que vinte e poucos centímetros elevam o poeta dos reles mortais.
Salvo as mortiças lâmpadas amarelas de 25 W dispostas em cada mesa, nenhuma outra luz ousa se infiltrar no covil e na fala do poeta. Muito menos as cibernéticas, frias, metalizadas, cancerígenas, pestilentas e filhas das putas emanações fotoelétricas dos aparelhos celulares. Nas noites em que o poeta lê no Solfieri, toda e qualquer parafernália eletrônica é recolhida à entrada, deixada em guarda-volumes e só restituída ao dono quando de sua saída. Antes do dono do bar, Solfieri, adotar tal conduta, acontecia amiúde, ao primeiro espocar luminoso ou sonoro de um celular, do poeta levantar-se  e ir embora, com o pagamento adiantado já no bolso de suas puídas calças.
O poeta dá uma boa emborcada na garrafa de vinho sempre posta ao seu dispor, gira a chave na ignição, sente o motor pegar no tranco, bota tudo no piloto automático e começa :

E já que a vida nos limita
E o corpo nos atraiçoa,
Fiquemos ébrios de água mineral
(mas não abramos mão de que seja com gás),
Nos masturbemos em lembrança do vinho
Feito a pelada da revista que nunca comeremos.

Evoquemos,
Em sessão espírita mediúnica,
O espírito de porco do álcool
Feito alma penada de finado ente querido,
Nos contentemos com o seu espectro
A substituir sua impossível presença.

E já que o fígado
Nos é velho ranzinza e preguiçoso
Que só se presta a jogar damas e truco na praça,
Nos sedemos de chazinho de camomila
Convoquemos Morpheus
Para algumas rodadas de Maracugina.

E já que o talento,
Definitivamente,
Nos foi dado em doses muito aquém de nossa pretensão,
Finjamos que somos imprescindíveis e brilhantes
Em nossos fastiosos ganha-pães,
Nos distraiamos e nos contentemos com nossos afazeres domésticos
Com os filmes vencedores do Oscar.

Nos embriaguemos de realidade,
Sejamos felizes com a mesmice
E com a eterna sobriedade...
Oh! Que tristeza!

O poeta encerrra. Dá uma outra boa emborcada. A plateia irrompe em aplausos e ovações. O poeta sabe que as palmas são mais da plateia para si própria do que destinadas a ele. Todos gostam de pensar que aquilo que acabaram de escutar é poesia, e que eles são pessoas diferenciadas, que sabem apreciar tal forma de arte, comoverem-se com ela. Não se apercebem de seu próprio janotismo. O poeta, sim. E tal clareza só aumenta o nojo do poeta por essa farsa toda.
O poeta julga que já escreveu bem um dia, relevantemente; porém, o tempo das relevâncias passa para todos e o poeta sabe que o dele há tempos expirou. O que ele escreve hoje, o poeta sabe, é merda, pura merda, como a que acabou de declamar.
E quanto mais raso, mais oco, mais rés do chão, mais a plateia celebra o poeta. Quanto mais do mesmo ele diz, quanto mais senso comum, quanto mais fala comum, quanto mais vala comum, mais lotam seus saraus, mais vendem seus livros. Pudera, pensa o poeta, as pessoas gostam e compram produtos nos quais se reconhecem. E ter uma manada de paquidermes a julgar que se reconhece nele é inferno para o qual o poeta não tem equivalentes pecados.
Hoje, pela primeira vez, o filho do poeta ajuda a compor a plateia. O filho do poeta sabe do emprego diário do pai, diurno, de sua ocupação formal e burocrática, sabe do trabalho normal do pai, mas nunca entendeu ao certo as atividades extradias, extrapais do pai.
O filho do poeta pouco entendeu o que o pai declamou. Assim como o pai, também não compreendeu o motivo de tantos aplausos e euforias, mas, diferente do pai, ficou fascinado com aquela adoração toda.
O poeta desce do palco e vai até a mesa do filho. Mal se senta e o filho pergunta :
- Pai, o que é isso que você faz?
- O que eles acham que eu faço, filho.
- Tá, e o que é?
- Alguns dizem que seu pai é escritor, outros, mais incultos e idiotas, até que sou poeta.
- Pai, eu também quero ser poeta!
A resposta do poeta veio em arco reflexo :
- Eu te proíbo, filho! Te proíbo de ser poeta!
E, então, o poeta entendeu tudo. Acabara de escrever o tão buscado último e ideal poema : te proíbo de ser poeta! Acabara de lavrar seu definitivo e irretocável verso : te proíbo de ser poeta!
O poeta olha para o filho e sorri. Estica as pernas, coloca os dois pés cruzados na cadeira à sua frente, relaxa, enfim, suas costas de Atlas no espaldar da cadeira.
Te proíbo de ser poeta! - o poeta repete mentalmente, aliviado.
Sua obra acabara de ser concluída.

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