O Cara dos Olhos de Raios-X (parte 2)

Olhei de novo e mais atentamente pro cara de voz triste e belas feições. Sua altura regulava com a minha, conseguia ser mais franzino que eu, o que não é feito dos mais fáceis, gestos delicados, sem serem femininos, mas delicados, semblante sem única cicatriz que pudesse inspirar medo, ou única ruga que pudesse inspirar respeito. E as mãos? Mãos de dedos finos e brancos, quase translúcidos, como se feitos dessas massas de modelar para crianças. Rabos de lagartixa. O cara parecia ter cinco rabos de lagartixa em cada uma das mãos. 
Como que lendo meus pensamentos e respondendo à pergunta que eu nunca lhe faria, continuou: 
“Eu seria um segurança preventivo, e não um reativo.”, e lá se foi o resto da segunda garrafa de vinho. 
“Aposto que não entendeu, né?” 
Não tinha entendido mesmo. Nem sei se queria entender. Eu só estava num bar, bebendo. A maioria das coisas vistas naquele bar não eram mesmo para ser entendidas. Mas posso dizer que não tinha a menor vontade de lhe perguntar nada. Melhor economizar palavras. O cara ia mesmo dizer tudo. 
“Eu trabalharia na prevenção, sabe?, eu verificaria cada pessoa que entra no estabelecimento, veria se não portam armas metálicas, de fogo ou brancas.” 
“Olha”, acabei falando, “o povo que vem aqui é meio estranho, mas, no geral, de índole pacífica. Nunca houve maiores problemas nesse sentido. Acho que não gostariam de ser apalpados ao entrar.” 
Além do quê, os caras que por lá aportam não iriam se sentir muito satisfeitos em ser revistados, tocados por um cara de aspecto frágil, delicado. Mas, claro, não disse isso ao cara. 
“Não. Nada disso. Eu não preciso tocar pra saber disso.” 
Agora, eu tinha ficado curioso. Estava acabando de engolir a cerveja na minha boca para perguntar o como ele faria isso, quando o cara sufocou um soluço, um engulho. Vinte oito minutos, dos quarenta da contagem regressiva para que o cara figurasse de vez no meu panteão. 
“Ó”, disse o cara numa voz ainda mais triste, “preciso ir até ao banheiro, urinar. Na volta, explico o resto.” 
E saiu a passos largos em direção à escada de acesso aos banheiros; galgou-a de três em três degraus, seus braços içando-o e impulsionando-o pelos corrimões. 
O cara tinha ido vomitar, faltaram 11 minutos para que eu lhe erguesse um altar. Mas nessas situações, 30 segundos são uma infinidade. 
Pedi mais uma cerveja, o Durval trouxe e comentou: 
“Que figura, esse viadinho aí, hein? Veio me pedir emprego de segurança. Quase falei pra ele ‘tu é segurança mesmo?’ , então segura aqui.”, e apontou pro pau, que felizmente o balcão cobria de minha visão, “segurança... segurança é a puta que o pariu. Com um peido, eu derrubo o viadinho.” 
E, em se tratando dos peidos do Durval, isso bem que podia ser verdade. E saiu para atender outros fregueses. 
Duas mulheres encostaram no balcão, pediram dois Alexanders ao Durval, que é uma bebida meio leitosa, achocolatada. Mulheres sempre andam às duplas nos lugares de caça. Dupla clássica: uma era a bonita, gostosa, desejável e desejada; a outra era a amiga feinha, rostinho até aprazível, mas meio gordinha, de óculos, umas espinhas aqui e ali. Ao longo de toda minha experiência por lugares com aquele, cheguei à conclusão de que há uma espécie de simbiose entre a gostosa e a pichorra. A pichorra sai com a amiga gostosa porque ela vai acabar sendo vista, mesmo que os olhares sejam dirigidos à gostosa; humilhante, mas, ainda assim, as chances da pichorra ser vista aumentam consideravelmente. A gostosa sai com a amiga pichorra porque, ao lado dela, sua beleza irá ainda mais se sobressair. 
É uma troca, um jogo de interesses. Dizia, uma amiga minha, sapatão, que nada é sincero ou gratuito entre mulheres. Um outro amigo, especialista em pegar pichorras, sempre expunha sua técnica: ‘você olha pras duas, a pichorra até que meio se encolhe, já se afasta, sai meio pro lado, sabe que os caras vão conversar com a amiga bonitinha. E aí, o que a gente faz? Vai e canta a pichorra, ela fica surpresa, estupefacta, ela é sempre a segunda a ser cantada, quando o cara não consegue a amiga gostosa. Essa pichorra será eternamente grata a você, fará todas as suas vontades.’ 
Eu, devo admitir, já tentei essa técnica algumas vezes. Nunca funcionou. 
Enquanto elas esperavam o Durval preparar as bebidas, eu cheguei a pensar em abordá-las, mas não consegui pensar numa abordagem. Acho que minha conversa funciona melhor com os loucos. Em nenhum momento, nenhuma das duas arriscou um olho pro meu lado. Pegaram suas bebidas e foram postar-se em uma das mesas. Levantei um silencioso e solitário brinde a todas as mulheres que não quiseram dar pra mim! 
Não brindo por pouca coisa. 
Naquilo, o cara bonito e triste chegou do banheiro. Cara macilenta, encovada, típica dos vômitos de vinho. Quem chega de uma bela mijada está com a cara aliviada, leve. Ou mesmo um vômito de cerveja, o vômito de cerveja também traz alívio, desempapuça. Os de vinho, não. Os de vinho são foda. Como se, junto ao vinho, você vomitasse seu sangue, sua força vital, seu anima. 
(continua)

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1 Comentários

  1. Porra! Novela das 9h isso rsrs. Brincadeira!! Eu tô gostando das Mil e Uma Noites. Ávida pro próximo capítulo.
    "J"

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