Viva o Luizão!!!

O ano de 1991 foi dos melhores para nós, que éramos alunos de graduação do curso de Química da USP - Ribeirão Preto. Os tradicionais Jogos Interquímicas, realizados desta feita no Instituto de Química da Unesp - Araraquara, foi o mais gordo e pródigo dos que participamos.
Pudera. Nossas bebedeiras e putarias tiveram dois involuntários patrocinadores. Um, o professor Cinelli, prefeito da FFCLRP à época, que nos deu uma grana à guisa de ajuda de custo para a viagem e para a participação no Interquímicas, evento universitário da mais alta relevância acadêmica, de âmbito internacional; o outro, o Luizão, pai do meu estimado e corno amigo Fernandão : o Luizão, sem saber, foi o grande mecenas dos Jogos Interquímicas de 1991.
Acontece que uma agência bancária, se não me falha a memória, do Unibanco, da qual Luizão era tradicional correntista, fechou suas portas na pequena e pacata cidade de Pitangueiras, e um talão de cheques, zero km, sem nenhuma folha usada, acabou sobrando e ficou dando sopa em alguma gaveta do Luizão. Meu amigo Fernandão não teve dúvidas nem titubeou, passou a mão no talão de cheques órfão de agência e levou pra Araraquara. E foi só cheque sem fundos do Luizão que voou por lá. Chegávamos no bar da faculdade em que ficamos alojados, mandávamos descer uma e mais outra caixa de cerveja e dá-lhe cheque sem fundos do Luizão. Era só bumerangue com borda de gilete que voava. Nem sei se cheque sem fundos é o termo tecnicamente correto, o Luizão até tinha fundos, o que não existia mais era o banco. Era cerveja pra cá e cheque do Luizão pra lá, era cerveja pra lá e a verba acadêmica do Cinelli para acolá.
Assim, às altas horas da matina, todo mundo já de caneco torto, não era incomum alguém levantar o copo e puxar um brinde : Viva o Cinelli!!! Viva o cheque do Luizão!!! E o coro aderia, eufórico, grato aos seus patronos : Viva o Cinelli!!! Viva o cheque Luizão!!!
Não sei até hoje se o Luizão deu pela falta ou soube da destinação de seu talão de cheques, mas sei que ele aprovaria seu nobre uso, chegado que sempre foi também a uma canjebrina.
E hoje fico sabendo que o Luizão, por volta das 23 h de ontem, fez a sua viagem final, foi ter com a indesejável das gentes, cumpriu com sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável.
Nas minhas quase três décadas de amizade com o Fernandão, pouco convivi com o Luizão. Aliás, o simples uso da palavra "conviver", ainda que minimizada pela anteposição do advérbio de intensidade pouco, já é um exagero. Estive e fiz pousada por várias vezes na casa do Fernandão, mas nunca troquei mais que meia dúzia palavras com o Luizão, que nunca foi homem de esquentar assento, nunca chegamos mesmo a levar aquela prosa. Ele estava sempre a passear pela cidade, a "ruar", a tomar sua cachacinha com os amigos, a jogar sua sinuca e seu truco. Quando chegava, era pra almoçar e dar aquela dormidona vespertina.
O que sei, portanto, do Luizão é o que sempre ouvi contarem dele. E o que sei é que ele era uma figura folclórica, quase que mitológica em sua cidade, e esta, palco e cenário de suas sagas, epopeias, peripécias e presepadas. Inúmeros foram os casos que ouvi contarem do Luizão. Desde o seu projeto, malfadado, da construção do primeiro carro anfíbio de passeio com tecnologia 100% nacional até, e esse é meu preferido, a sua incursão, igualmente malograda, como instrutor de autoescola da D. Maria.
Aqui, um agradecido parênteses se faz obrigatório. D. Maria é esposa do Luizão e mãe do Fernandão, e também a responsável pelas boas acolhidas e pelos confortáveis pousos que sempre tive quando ia para lá a passeio. Longe de ser uma amélia, D. Maria é da categoria das mulheres de verdade, daquelas antigas que não se fazem mais, daquelas que colocam sua família e seu lar sob as suas asas, sob a sua proteção ininterrupta. D. Maria é quem sempre segurou as pontas da casa, quem sempre deu suporte e logística, inclusive às trapalhadas do Luizão e do Fernandão. D. Maria sempre foi o esteio estrutural, moral e direi até espiritual da casa. Sim, porque, a zelar por tal pai, tal filho, D. Maria, muitas vezes, precisou recorrer a forças sobreterrenas. O que D. Maria já acendeu de velas para clarear o caminho e ajudar o Fernandão a se livrar de suas enrascadas, dava para abastecer Aparecida do Norte por toda a Semana Santa, Corpus Christi e feriado da Padroeira.
E, então, num belo dia, o Luizão resolveu que era hora de iniciar a D. Maria nos rudimentos da condução automotiva. Pegou a D. Maria, dirigiu-se com ela para fora da cidade, para a mais didática tranquilidade das estradas do campo e iniciou sua instrução. E tudo correu muito bem. Durante um tempo. Até que, sabe-se lá se ela acelerou quando tinha que ter freado, se a embreagem emperrou, se a marcha encavalou, se o volante deixou de obedecer às ordens de suas mãos, num átimo de instante, D. Maria perdeu por completo as rédeas do carro. Que partiu corcoveando pela estrada de terra batida, em desabalada rota de colisão contra uma sólida e pesada porteira de uma bucólica propriedade rural. Contam que Luizão rapidamente interviu em socorro da esposa, tentou brecar, puxar o freio de mão, retomar e domar o volante com mãos de ferro... tudo em vão. Quando viu que era caso perdido, não teve dúvidas, tentou um último recurso, botou a cabeça para fora do carro e berrou : " - Sai, porteira!!!"
E, agora, fico a saber que o Luizão foi pego à tocaia, à traição por uma pneumonia, com requintes de crueldade de uma infecção generalizada.
Fico a saber que, agora, foi o Luizão que perdeu o controle do carro, e, por descuido ou distração, dobrou em uma entrada equivocada, fez uma conversão errada nessa longa estrada da vida e pegou uma vicinal para a Morte, talvez aquele longo túnel de que todos falam, com uma forte luz branca ao final, a sinalizar, a delimitar a fronteira entre a presença e a saudade, entre o território dos vivos e o dos que a vida emancipou, uma porteira com a Morte por agente aduaneira a receber, vestida com sua mais bela roupa, os novos visitantes.
Tenho a plena certeza de que o Luizão, com o valoroso auxílio da co-pilota de sua vida inteira D. Maria, bem que tentou encontrar  um retorno para a estrada principal, seu GPS bem que tentou recalcular a rota, sei que ele tentou brecar, puxar o freio de mão, retomar e domar o norte do volante com mãos de ferro. Mas quando viu que tudo era em vão, que era caso perdido, não tenham dúvidas, Luizão botou a cabeça para fora e berrou : "- Sai, porteira!!!"
Se era a porteira do Céu ou a do Inferno, quem saberá? Seja qual delas for, o fato é que o Luizão vai dar muito trabalho por lá. Pããããta que o pariu se vai!!!
E agora, aqui, nesse início de madrugada, à sacada do meu apartamento, a terminar o meu último latão de Bavária, como faço todos os dias, ou por gosto, ou por vício, ou para garantir um sono minimamente tranquilo, ou para matutar um pouco sobre a vida sem, no entanto, pensar na morte, só um desejo me vem à cabeça, só um pensamento em homenagem ao Luizão, um solitário e modesto tributo ao seu passamento. Braço em riste, ergo o latão em direção à noite e à cidade, dou uma boa emborcada e saúdo : "- Viva o cheque do Luizão!!! Viva o Luizão!!!"  E um coro silencioso, composto por minha memória e talvez por alguns dos credores dos tais cheques, adere, respeitoso : Viva o Luizão.
Luizão, na única foto que achei dele pela internet, de 1964, quando serviu ao Exército Brasileiro, na gloriosa divisão da Cavalaria, se não me engano. De onde se vê que aquela história de que o sujeito se emenda depois que passa pelo exército é pura lorota. 
Viva o Luizão!!!

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