Pequeno Conto Noturno (34)

Show de rock. Um dos últimos lugares em que alguém pensaria em procurar por Rubens. Um dos últimos em que ele próprio, Rubens, pensaria em estar.
Não por ser de rock, que o velho rock foi o único motivo que o fez andar e vir, que o velho rock ainda entorta a sua coluna cervical. Mas por ser um show, um amontoado de gente.
Acontece que a banda ao palco, em turnê comemorativa pelos 30 anos de carreira, fez parte da trilha sonora da tímida e misantrópica juventude de Rubens. Ele não resistiu aos uivos e ao arrastar de correntes do passado.
Rubens estava em fins da adolescência quando a banda estourou nas rádios FM; Calíope, talvez, a ingressar no pré-primário.
E é Calíope - hoje uma balzaquiana muito da gostosa e apetecível - que Rubens vê à sua frente, a se agitar e cantar junto com a multidão; Rubens, hoje um chamado homem de meia idade, classificação que nunca entendeu, pressupõe que todos atinjam os seus 96, 98, 100 anos de longevidade, Rubens nem espera ser amaldiçoado com tantos agostos assim.
Um reencontro por acaso, esse com Calíope, mas não uma surpresa. Sempre que sai de casa, seja para onde for, banco, farmácia, mercado, livraria, andar a esmo, Rubens imagina Calíope se interpondo em seu trajeto, cruzando com ele. Cinco ou seis anos desde a última vez...
Calíope está de costas para Rubens, acompanhada, Calíope sempre está acompanhada, um novo amigo, um novo namorado, ou, possivelmente, dessa vez, um marido, se não for coincidência os dois ostentarem parecido brilho metálico em suas mãos esquerdas.
Rubens não se aproxima, ainda. Aguarda por uma brecha, um interstício. Calíope e seu acompanhante bebem cerveja; em breve, ou a cerveja acaba e precisará ser reposta, ou a bexiga precisará ser aliviada ao banheiro, ou as duas coisas.
Duas ou três música depois e, pelo menos, uma delas acontece, a Rubens pouca importa qual, e Calíope fica sozinha.
- Ele foi comprar mais cerveja, ou mijar? - Rubens, sem dizer quem era, sem medo de que sua voz não fosse prontamente reconhecida.
- Comprar cerveja e mijar. - Calíope, sabendo a quem respondia, sem medo da voz que prontamente reconhecia.
- Pode ser um abraço, então? Daqueles de antigamente? - Rubens, como se estivesse estado com ela ontem, como se nada precisasse relatar dos anos ausentes, como se nada fosse importante a ponto de ser relatado.
E o abraço vem, de imediato, como se Calíope também tivesse falado com Rubens na véspera, como se nada tivesse se passado com ela nesses anos todos e que Rubens não soubesse.
Na verdade, haviam realmente se visto e falado na véspera, se veem e se falam sempre, quase todos os dias, em suas lembranças.
Calíope tem quase o mesmo porte de Rubens, mulher grande. Os peitos grandes de Calíope se ajustam perfeitamente ao de Rubens, magro e encovado.
"Me dê de presente o teu bis" - declama a banda no palco.
Trocam mais olhares que palavras, Rubens e Calíope. Ela convida Rubens a ver o resto do show com eles, ela e o marido, não haveria problema algum, ela garante, Rubens seria apresentado como um velho e grande amigo, talvez ela já tenha até mesmo falado dele ao marido, algumas vezes.
- Melhor que não - diz Rubens -, prefiro continuar ali atrás, olhando, para você, para suas formas, seus movimentos, seus peitos, imaginando lhe comer de todas as maneiras.
"Por que que a gente é assim?" - pergunta a eterna pergunta a banda ao palco.
Separam-se. O marido de Calíope retorna, dois ou três minutos depois.
Calíope passa o resto do show sabendo de Rubens às suas costas. Sentindo-se olhada, em suas formas, em seus movimentos, em seus peitos, sendo comida de todas as maneiras.

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3 Comentários

  1. Mestre, há quanto tempo!
    A nostalgia bate doída no peito quando me recordo dos tempos de escola. Época em que eu era feliz e não sabia - embora uma vez você me disse que não era bem assim, que havia uma diretora ímproba lá, em tal ocasião, cujas idéias não lhe agradara.
    Em compasso com a nostalgia, bate o arrependimento. Eu não prestava atenção à frase proferida repetida e insistentemente pela minha mãe: "Filho, estuda mais. Estuda, se quiser ser alguém na vida um dia." Achava que isso era só palavras vazias que as mães diziam aos filhos só pra passarem a impressão de que efetivamente se preocupavam com o desempenho escolar dos seus, sendo que mal olhavam os cadernos, tampouco compareciam às reuniões de mestres.
    Atualmente sobrevivo de alguns subempregos, e invariavelmente conservo a minha paixão pela literatura, música e cinema. Não consigo conter o sorriso ao recordar de que eu fora mui ridicularizado por gostar de ler. Enquanto os colegas de classe faziam algazarra, paqueravam as meninas, atormentavam os professores, eu vivia submerso em um mundo fascinante de tipos e lugares sob os quais as minhas bases filosóficas se sustentam. Parte do que eu sou, devo a eles. Eterna gratidão.
    Entretanto, isso não ajuda a pegar a mulherada. Sem dúvida falar de Érico Veríssimo, Chico Buarque, Jorge Amado, Conan Doyle, Caetano Veloso, Scorsese, Stanley Kubrick, Tarantino, Bukowski, e tantos outros é queimar o filme na certa. Acompanha-se as tendências para se obter sucesso com as fêmeas, mas me recuso a gostar de sertanejo universitário pra lograr êxito. É decepcionante, mas parece que a onda crepúsculo, 50 tons de cinza, tchê-tchere-rê-tchê-tchê, está varrendo as coisas boas para debaixo do tapete do esquecimento. Ainda bem que existem pessoas a preservar essa cultura de conteúdo inteligente e instigante, de inestimável valor.
    Gosto bastante dos seus pequenos contos noturnos! (Rubens porventura é um alter-ego? rsrs) As mulheres muitas vezes não se dão conta de que tudo o que um homem quer é uma foda bem gostosa. Se vier acompanhada de um bom whisky, um papo cabeça e uma cagada pós-coito, melhor ainda! E pra isso eles não hesitam em mentir, em passar uma imagem de qualquer tipo que essencialmente não seja o dele.
    Quem sabe um dia, se eu tiver condições, você não me cede os direitos de um desses contos para ser adaptado pra vídeo? Estou fazendo testes com animação em stop-motion. Se der certo, vou poder conceber algumas idéias interessantes que tenho em mente.
    Mestre, minhas saudações.
    Paz e saúde ao pequeno Raul!
    Abraço.

    Rodolfo.


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    1. Bom tê-lo por aqui, Rodolfo. Seria interessante ver Rubens adaptado para o vídeo. Mande um e-mail ou fone para contato e podemos conversar.
      abraço.

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    2. Eu não consigo entender como há tanta história boa que não é adaptada - tanto de escritor famoso, quanto de escritor desconhecido do publicão...
      Mas pode deixar. Se surgir o ensejo, entro em contato!

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