O Sorriso da Cleonice

Tenho um móvel na sala.
De madeira
Retangular
1,5 m x 0,8 m.
Uma espécie de estante.
Dividida não em prateleiras horizontais,
Sim em quadriculados,
Feito aqueles escaninhos antigos,
4 x 2.
Em cima dela,
Um porta-retratos
Um vaso de cristal
Dois elefantes com as bundas viradas para a porta de entrada.
Nos quadriculados,
Enfio ali
Meus cadernos
Rascunhos
Estojo de canetas
Fios de extensões
Minha bolsa de lona cáqui  
Cartelas de Dipirona
Livros já lidos
Em andamento,
À espera.

Minha gata Cleonice
Também costuma se meter
E hibernar por ali.
Escolhe sempre a célula mais abarrotada.
Podem estar todos os quadrados vazios
E apenas um ocupado :
É para esse que ela pula.
E com sua pata almofadada
E movimentos de tai chi chuan de que só os gatos são capazes,
Vai empurrando para fora,
Para o chão,
O que julga necessário para ali se enrodilhar :
Às vezes, um livro
Às vezes, o estojo de canetas
Às vezes, meus óculos.
Horas depois,
Pula para o chão.
Franze e ajusta os olhos
Alfinetados pela luz.
Boceja,
Espreguiça.
Sai, belisca uns grãos de ração,
Alivia-se na caixa de areia.
Volta
Arranha o tapete
E vai se encaixar na caixa de sapatos
Ao pé da árvore de Natal.

E passa o dia nisso,
Nessa rotina
Nesse vai e vem
De lugar nenhum pra nenhum lugar.
Sem nenhum problema
Sem nenhum exaspero
Sem nenhum drama de consciência
Sem nenhum tipo de frustração
Pela mesmice
Sem culpa nenhuma pelo ócio.

Gatos,
Mais que qualquer outro ser vivo,
Coexistem tranquilamente
Com o inexistente sentido da existência.
A Cleonice não pensa na vida.
Ela só vive.
Só é.
Cleonice não precisa de álcool,
De antidepressivos, 
De religiões.

Sem contar que,
De madrugada, 
Amiúde,
Desperto com ela
Sobre o meu peito,
Acocorada em esfinge.
A me observar
A me guardar
A me proteger de meus demônios
Com seus olhos de topázio.
Mais lindos que os de qualquer mulher
Que já tive a chance de vislumbrar.
De uma serenidade
Que eu já tive
E há muito perdi.
De quem era capaz
De reler Alice no País das Maravilhas
Numa única tarde
Sentado ao banco 
De uma umbrosa praça.

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13 Comentários

  1. Aaaah, que gracinha a Cleonice. Adorei os versos dedicados a ela.
    Minha gatinha Céu tem a pelagem parecida com a dela. Que fofura!!!


    A minha Céuzinha: https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEg06HSM32Bq8PcgGxiDOGs7oFPPSb4Ub74Cy9hgIpBYVUxYrHzf1VCoRYmXiLFRNwof0ogWS1mEOTHijSPJtuHR-aR9hc-DVrcgFOrl-RjfVM7JA82WOR2JQnjYeDExv4iVkUhdnVwIcyvwjpi3hjp-0KIfN0W8nzdmp6Gf28WKa1IBIo6bHxVtjw=s16000
    (é o link de uma foto kkkk)

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    1. Vi a Céu, ela tem uma máscara desenhada certinha nos olhos. Na foto, ela parece ser ainda meio filhotona, né? Eu tenho também a Pretinha, irmã da Cleonice, as duas estão já com 15 anos. A Pretinha, há cerca de três anos, teve que retirar todas as mamas e, agora, mais recentemente, o câncer voltou e atingiu outros órgãos, sobretudo o fígado. Agora, não há mais o que fazer. Só esperar. Ao menos, por ora, ela não sente dor, se movimenta normalmente pela casa, se alimenta normalmente também. A veterinária falou que quando, e se, ela vier a sentir dores, passará a ficar amuada pelos cantos, não mais se alimentará. Caso isso chegue a ocorrer, será a hora de tomar a difícil decisão.
      Ah! Até salvei a foto da Céu.

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    2. Ah, e caso não tenha visto, aí está a Pretinha
      https://amarretadoazarao.blogspot.com/2022/10/uma-ode-pretinha.html

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    3. Puxa vida, que coisa mais linda a Pretinha! Toda peluda. Pelos versos, é notável que dentro do Marreta habita um coração. Espero que tudo fique bem com ela, da forma que tiver que ser. :/ O tempo é avassalador pra todos nós.
      Minha cachorrinha tinha epilepsia e faleceu, mas ela não chegou nem a completar dois anos.

      Os gatos são companheiros sinceros. Gosto particularmente do comportamento da minha: ela demonstra carinho quando quer, e recebe quando quer. Adotamos ela por acaso. Ela veio conosco dentro do motor do carro, acredita? Chegamos em casa, escutamos um miado, e lá estava ela. É literalmente aquela história de "foi ela quem nos escolheu".
      E que nada, acredito ter sido o ângulo que tenha a feito parecer filhote. Ela já tinha tido a primeira cria quando tirei a foto. Já estava até castrada.

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    4. E, aliás, estive final de semana passado hospedada em Ribeirão Preto. Passava pelas escolas e pensava: "será que Marreta dá aula aqui?" 😂😂

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    5. Já tinha estado por aqui antes? Particularmente, não gosto muito dessa cidade, não.

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    6. Já tinha sim! Ribeirão Preto é o "polo dos hospitais" e "a cidade do shopping" pro pessoal daqui da minha cidade. Nossa cidade é bem pequena e não tem muita coisa, por isso ir pra Ribeirão é sempre algo maravilhoso. 😂😂
      Por que você não gosta, Marreta?

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    7. Shoppings e hospitais... dois lugares em que só entro em caso de extrema e inescapável necessidade. Fora isso, evito passar até na porta.
      Espero, ao menos, que se não por outros motivos, você tenha estado aqui pelos shoppings.
      Por que não gosto daqui? Vou preparar uma lista e depois te falo.

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  2. Ora, e quem é que não sabe disso, que eu sou um fofo?
    Pãããããta...
    Valeu. Abraço.

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  3. "Gatos,
    Mais que qualquer outro ser vivo,
    Coexistem tranquilamente
    Com o inexistente sentido da existência.
    A Cleonice não pensa na vida.
    Ela só vive.
    Só é.
    Cleonice não precisa de álcool,
    De antidepressivos,
    De religiões."
    Que inveja da Cleonice!

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  4. Olá, Marreta. Tudo bem? Gatos parecem gostar desses lugares apinhados de coisas. Vez ou outra os meus se deitam em posições completamente bizarras e nos lugares menos confortáveis. Para eles, não sei, pode ser como um desafio.
    Gosto da forma como os gatos vivem. Eles não se importam em viver na mesma rotina todos os dias, de fato, preferem que nada mude. Gostam de coisas muito inúteis para nós, como caixas de papelão e folhas de papel. Se impressionam muito facilmente com sons, com cheiros, com gente nova. Eles carregam um pouco do que tínhamos quando crianças e, de alguma forma, perdemos. É a história do pequeno príncipe, no final. Uma criança sempre acaba por se tornar um adulto e ficar chato.
    Abraços!!

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    1. Concordo com você. Nós perdemos a tão necessária curiosidade. Escrevi, inclusive, sobre isso. Lá em 2009. Se quiser ler :
      https://amarretadoazarao.blogspot.com/2009/03/a-falta-de-curiosidade-matou-o-gato.html

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