A Copa do Mundo de 1986

Quem me conhece acha - tem certeza - de que eu não gosto de futebol. Não é verdade.
Como prática meramente desportiva e recreativa, nada tenho contra o ludopédio. É uma atividade física com regras ilógicas como qualquer outra, basquete, vôlei, tênis, handebol, beisebol etc.
Tanto que, em criança, já joguei muita bola em campinhos improvisados em terrenos baldios e mesmo na rua, traves de lata de óleo, ralando o joelho no asfalto. Colocavam-me sempre no gol, é claro. E eu até que era bom, defendia pênaltis e tudo. Que o diga meu amigo Marcellão, que nunca conseguiu penetrar a minha defesa. E nenhuma outra coisa, também. Que calcanhares frouxos, quem tem é o Aquiles. Valha-me São Jotabê!
Também joguei muito futebol de botão. Possuía os times do Palmeiras, Santos, Cruzeiro, Grêmio, Botafogo de Ribeirão Preto. Na verdade, eu gostava muito mais de confeccionar os goleiros do que a partida em si. Não usávamos o goleiro que acompanhava os botões, uma espécie de escudo plástico acoplado a uma longa haste, para que o mesmo fosse movimentado dentro do gol. Enchíamos caixas de fósforos com areia ou pedras, encapávamos com papel e colávamos o emblema do clube nelas.
Aliás, enchiam de areia e pedras, os outros. Eu pegava (surrupiava, mesmo) aqueles pequenos lingotes de chumbo usados no balanceamento de pneus dos automóveis e, usando a chama de uma lamparina à álcool, item integrante do meu laboratório de química Guaporé, derretia-os em panelinhas de alumínio dos brinquedos de casinha da minha irmã. Vertia o chumbo para a caixinha e pronto.
Porém, o que eu nunca entendi desde criança (na época, eu só não entendia; hoje, incomoda-me profundamente) nem era o gosto popular pelo futebol, sim a devoção aos times, a idolatria aos jogadores. O fanatismo.
Meu pai me arrastava para o estádio de futebol do Comercial F.C. muitas vezes com ele. Eu não via sentido nenhum - e continuo não vendo - naquela gritaria, naquela comoção toda quando uma bola ia para fora, batia na trave, balançava as redes. Só sabia que, naquele exato momento, estava a passar o Festival Jerry Lewis na TV.
Eu, então, encaramujava-me num outro mundo, sublimava o entorno. Distraía-me com uma formiga que andasse pelo cimento rachado da arquibancada, com a habilidade do cara do amendoim, que acertava sempre a mão do cliente, com o quero-quero atrás do gol, com um avião que passasse.
Amigos da escola e vizinhos, todos eles, sabiam as escalações de seus times, a posição de cada jogador, a classificação na tabela. Eu, por outro lado, demorei até pra entender o que significava o time “jogar em casa”. Eles colecionavam álbuns de figurinhas de jogadores, empenhavam-se em fragorosas batalhas de “bater bafo” para conquistar cromos que lhes faltavam. Eu colecionava selos, chaveiros, tampinhas de garrafa e besouros reluzentes e envernizados.
Nunca entendi a paixão por clubes e jogadores; a paixão no significado mais castiço de sua origem etimológica, pathos, doença. Nasci imune ao futebol e às religiões, que são, no fundo, a mesma coisa. E olhem que era uma época em que os ídolos da pelota eram pessoas que, ao menos em público, portavam-se com decência e compostura, podendo servir mesmo de modelos para a meninada. Zico, Falcão, Sócrates, Rivelino, Ademir da Guia, Emérson Leão. Imaginem, então hoje, na era Neymar? Na era da ostentação de riqueza e, sobretudo, de falta de caráter? Aí é que não posso mesmo compactuar.
Lembro-me bem - e, enfim, o motivo da postagem - da Copa do Mundo de 1986, no México. Eu contava com 18 para 19 anos de idade. Foi um tormento. A última conquista de título da seleção fora em 1970, a do tricampeonato, a da Jules Rimet. Para incentivar os atletas e a torcida, não sei se a Globo, ou se a própria CBF, sei lá, lançaram um jingle, uma vinheta musical, a 70 Neles! Interpretada pela finada Gal Costa : Ô, ô, ô,ô, ô,ô,ô,ô, Um grito novo a torcida uniu, 70 neles, 70 neles, 70 neles outra vez Brasil.
A todo momento, em todos os lugares, aquela desgraça tocava. Na televisão, era fácil, eu desligava e pronto, nunca fui muito chegado em televisão. O problema era nas rádios FMs. Na época, sem grana para comprar LPs, eu me abastecia de músicas nas FMs, gravava-as em fitas cassetes. Tenho 42 delas ainda, guardadas numa gaveta. Minha base de operações era um 3 em 1 da Panasonic. Para quem não viveu esse período, o 3 em 1 era um aparelho de som que reunia toca-discos, gravador e rádio AM e FM num único módulo. Punha a fita cassete na posição, abaixava os botões play e rec, acionava a tecla pause e ficava de campana, à espera da música que queria gravar. Quando, depois de muita espera, até de dias, às vezes, a música começava, tinha que estar perto, reconhecer a música logo no início, ser rápido no gatilho e destravar a pausa.
Pois durante a duração da Copa, não consegui gravar uma única música de forma decente, na íntegra. A fita estava lá, registrando a música e, do nada, o filho da puta do locutor soltava a vinheta da Copa, 70 neles, 70 neles, 70 neles outra vez, Brasil. Aguentei quase um mês dessa merda. Mas minha vingança chegaria. Eu nem sabia disso ainda, mas chegaria.


Brasil x França. Brasil eliminado nos pênaltis. 4 x 5. Não vi o jogo. Passei a maior parte do tempo em cima do telhado de casa - a última habitação térrea em que morei. Morávamos numa rua paralela e quatro quarteirões acima de uma grande avenida, pela qual, nos dias de jogo do Brasil, uma romaria de carros embandeirados passava em direção aos bares, restaurantes, lojas de conveniência. E eu ficava lá, empoleirado, observando aquela procissão sem sentido e aproveitando o vento frio de julho - sim, eu era estranho (era?). Às vezes, levava até um livro ou um gibi para o meu ninho de águia.
Nesse dia, só desci quando os gritos de desilusão e os lamentos da vizinhança começaram a chegar aos meus ouvidos. Foi quando fiquei ciente da eliminação da seleção pela França. Meu pai e meu irmão mais novo, tristes, inconformados. Minha mãe na cozinha, cuidando da vida, também cagando e andando pra seleção.
Nada fora premeditado. A ideia me veio de estalo. A hora da minha vingança era aquela. Não titubeei : tirei o telefone do gancho e disquei o número da Clube FM. Quando ligava para pedir uma música, em 95% das vezes, dava ocupado. Mas não naquele dia. Ninguém queria ouvir música. Logo me atendeu um locutor sem aquela animação idiota na voz, própria de seu ofício.
- Quero pedir uma música - falei.
- Que música você gostaria de ouvir? - perguntou-me com voz de velório.
- 70 Neles!!!! - gritei exultante.
O filho da mãe desligou na minha cara. O sujeitinho mal-educado.

em tempo : eu me lembrava apenas do refrão da música, então, fui ao Google para achá-la na íntegra e caí no  videoclipe veiculado na TV. É uma pérola. Uma raridade. Um verdadeiro arquivo do que eram aos anos 1980, tempo de machos das antigas e nos quais o patrulhamento politicamente correto das feminazis e outra minorias ainda nem sonhava em nascer, ótimos tempos. O clipe vale a visita. A música, como já deu pra ver, é uma merda, mas as imagens são a cara do Brasil, são a quintessência do tripé de nosso patrimônio cultural : futebol, praia e gostosas! Tem uma gostosa jogando futevôlei em um sumário fio-dental enfiado no rego. E dá-lhe close da câmera na bunda e no bucetão!!! E a voz e o rosto da Gal aparecendo ao fundo. Fosse hoje, fariam com a Gal o que deus acabou de fazer. Cancelariam-na.

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3 Comentários

  1. Rachei de rir com a vingança! Muito engraçado e irônico o texto. Somos tão parecidos em matéria de futebol que me sinto um irmão mais velho seu. A primeira vez que fui ao Mineirão eu tinha uns dezesseis anos (1966, por aí) e fiquei olhando tudo, menos o jogo. Em compensação, alguns de meus cunhados são fanáticos por futebol e todos atleticanos. Mas um deles diz que acima de tudo é anticruzeirense e só depois atleticano. Essa paixão alucinada eu realmente nunca entendi também. Mas olharei com interesse o vídeo, cuidando para dar stop em imagens estratégicas.

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    1. "e fiquei olhando tudo, menos o jogo", era exatamente isso. E eu ficava atento aos radinhos de pilha dos torcedores para ir sabendo quanto faltava pra acabar. Já com meu irmão, 11 anos mais novo que eu, meu pai teve mais sucesso, ele também é aficionado por futebol. Costumo dizer até que meu irmão foi o primeiro filho homem que meu pai teve.

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  2. Eu parei de ouvir rádios no rádio mesmo há muito tempo. Com a internet, baixei uma caralhada de discos e tenho um acervo de quase 200 CDs com uma média de 10 a 12 álbuns em cada. Assim, durante muitos anos, só ouvi esses CDs. Do ano passado para cá, com a necessidade de adquirir um celular por questões do trabalho, voltei a ouvir rádios, pela internet. Tem um aplicativo muito bom, o Radionet. A gente pode selecionar o segmento musical que deseja ouvir e ele relaciona um monte de emissoras.

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