A República dos Sonhos

Dia desses, por falta de assunto, ou, pior, por falta de vontade, por pura preguiça e prostração de escrever sobre algum assunto, publiquei uma postagem à qual intitulei Amigo de Leite é Bezerro, motivado pela imagem que re-reproduzo abaixo.
Achei-a de uma verdade incontestável. Tirante a gangue de psicopatas do Laranja Mecânica e o bom Jotabê, ninguém se reúne em torno de um copo de leite morno com Toddy e umas rosquinhas Mabel por tira-gosto. 
E não é que, depois de uns 15 dias da postagem, eu recebo um raro e inusitado comentário do meu amigo Fernandão? Um comentário dotado de uma inesperada e insuspeitada sensibilidade, sensibilidade de macho. Comovente, mas sem nenhuma viadagem. Eis o comentário do Fernandão :
"Bem caro amigo AZARÃO, foi em uma dessas cachaçadas que nossa amizade sincera e persistente começou.....a que saudades daquela republica, aquilo sim é que era a verdadeira republica, não essa, desse PAIS maltrapilho que vivemos.....lembra.....saudades das putas, pobres, pretos, viados, sapatões...aquilo sim era inclusão social, e a gente incluía mesmo....tudinho se deixasse. Que o diga o Paquera e o Cascatinha......kkkkkkk".
E é a pura verdade. Cristalina feito vodka russa tridestilada. Fundada em 1989, a República do Fernandão, e não a do Sarney, foi a verdadeira Nova República, foi a verdadeira democracia reinstalada depois da derrocada do governo militar, em 1985 
O Azarão foi concebido e parido na República do Fernandão. A República do Fernandão foi o útero, a manjedoura e a UTI neonatal do Azarão. O Fernandão foi o meu Stan Lee, e eu o seu Homem Aranha, a sua criação mais bem-sucedida. O Fernandão foi o soro do supersoldado, foi os raios gama, a picada de aranha radiativa que deu origem ao Azarão.
Tendo como quartel-general um sobradão antigo e decandente, da época dos barões do café, bem no centro da cidade, ali se via, se encontrava e se reunia de tudo. Toda a fauna e flora. Conhecida e ainda por ser classificada. Desse e de outros planetas.
Teve festa de ultrapassar 70, 80 pessoas, que nunca tínhamos visto e que nunca mais veríamos. E isso, só no boca a boca, só no disse-me-disse. Eram épocas - felizes épocas - livres de internet, de fotos digitais e do narcisismo estúpido das redes sociais. O inconsciente coletivo era que divulgava os eventos e os lugares a se frequentar. Época em que ninguém ia à festas já pensando nas fotos que iria tirar e postar. Época em se ia à festas unicamente para festejar. Garanto que não existe uma única foto das inúmeras festas da República do Fernandão. Só os polaroids da memória. Ainda bem!
O meu bom e velho amigo está certíssimo. Nunca houve, nem antes e nem depois, um espaço mais democrático e inclusivo que a República do Fernandão. Ali se congraçavam o veterano e o calouro, o Don Juan e o cabação, o preto e o branco (que à noite, como bem diz o ditado, eram todos pardos), a pudica e a biscate, o maluco beleza e o CDF, as Cinderelas e as moças do sapato grande, os trogloditas e os rapazes alegres, os desiludidos e os cornos de toda espécie.
Ali, todo mundo era igual. Todo mundo estava na mesma barca furada. Cada um nadava e se virava como podia. As oportunidades eram equânimes para todos que ousassem ali se adentrar. E os infortúnios, também. Já vi muito cara metido a galã, todo bonitão, bem vestido, perfumado etc sair de lá sem pegar nada, ficar, literalmente, na mão. E também muita mocreia, que ninguém, em nenhum outro lugar do planeta, desse e de outros, comeria, se dar bem. Salve, salve, Leni Vidal, essa incompreendida, que levava Moët & Chandon, a original francesa, para as festas, e tacinha flute porra nenhuma, o povo virava no gargalo mesmo, já vi cara botar Moët & Chandon pelo nariz. Não a havia, mas uma placa a encimar  a porta de entrada com os dizeres de Dante - perdei, ó vós que aqui entrai, toda a esperança -, seria muito adequada e ilustrativa. Ali, não havia rico nem pobre; ali, bebia quem pagava e quem não pagava. Bem sabe disso Wilson Takita. 
Aquilo era um portal dimensional, uma bolha no espaço-tempo, um Triângulo das Bermudas. 
E, invariavelmente, por volta das três, quatro da matina, chamados pela vizinhança, os homens da lei, a polícia, baixavam em nossa porta. Aí, era a vez e a hora do Marcão. Ele saía e ia conversar com os agentes da lei. Nunca soubemos o que ele falava para os policiais, qual o 171 que ele mandava para cima dos meganhas. Suborno e propina é que não eram. Ninguém ali tinha um puto para molhar a mão de quem quer que fosse. Mas sempre funcionou. Os policiais partiam em paz.
Porém, como acontece com todo áureo período, com todo império, com toda era geológica, a República do Fernandão teve o seu declínio, a sua derrocada; seu fechamento se deu em 1995. Lembro-me de ter ajudado com a mudança, de ter colocado, junto com o Fernandão, os velhos móveis na carroceria de um caminhão. Lembro-me do Fernandão trancando, pela última vez, a velha porta de madeira da entrada. Lembro-me do caminhão partindo e eu voltando para minha casa. No caminho mesmo, escrevi mentalmente o poema A República dos Sonhos - já escrevi muito mais poemas para os amigos do que para as putas que comi. Poema que permaneceu inédito até hoje, que até o Fernandão só tomará conhecimento dele agora, mais de 20 anos depois.
A República dos Sonhos
República das quimeras,
Das alegrias noturnas,
República das bebedeiras,
Não quero lhe ver de novo
Sabendo que será a vez derradeira.
Prefiro lembrar da sua voz
No tempo em que ela perturbava a vizinhança
E ainda não denunciava a sua ruína.
Não quero essa última visita
Agora que sei de sua trágica sina.
Eu só poderia lhe mostrar meus olhos vazios e tristonhos
E você só os merece como eram antes
Febris, vidrados e cheios de sonhos.
Cada festa era uma promessa de felicidade;
Promessa, que é verdade, nunca se cumpria
Mas até que, às vezes, lá pela madrugada
Antes do raiar do dia
Nos passava bem perto, nos roçava de leve.
E aqueles que a virem daqui em diante
Só verão o seu deserto
Não chegarão nem perto de saber dos seus dias,
Só saberão de você quem com você esteve.
E agora 
Que mais um ciclo se encerra
E agora
Que vai mesmo cair por terra
Onde foram desperdiçadas as forças
Que nos permitiriam achar uma saída?
República dos devaneios
Dos amores não correspondidos
República dos sem-iguais
Não quero lhe ver de novo
Sabendo que não lhe verei nunca mais.
Mas infelizmente serei eu
Juntamente com seu dono
Que irei recolher seus restos mortais. 
Mas preferia não lhe ver assim,
Vendo em sua derrocada
Também o prenúncio do meu fim.
Não sabe com que remorso
Lhe ofereço essa minha tristeza
(único presente a mim possível)
Em troca de tudo o que já me deu.
Não sabe a dor que sinto
Em ver vazios os seus recintos
Onde tanto já se viveu.
Não sabe o flagelo,
Essa agonia sem paralelo,
Que o meu coração agora corta
Em ser eu o único em seu enterro
Em ser eu a lhe fechar as portas.
Cada festa era uma chance de felicidade
Chance que, 
É verdade,
Sempre deixávamos escapar,
Pois se a agarrássemos
Que motivos teríamos para aqui voltar?
E como gostávamos de aqui sempre voltar!
E agora
Que está mesmo perdida
E agora
Que está no fim da vida
Onde foram desperdiçadas as nossas forças
Que nos permitiriam lhe ressuscitar?
Mas também estamos velhos
E nossos olhos são covas rasas,
Só nos sobraram forças
Para realizar a sua eutanásia.
República dos sonhos
Das horas escuras
República das sensatas loucuras,
Vai e ocupa o seu lugar no esquecimento,
Se torne em mais de nossos moinhos de vento,
Estará sempre presente em nossos mais tristes lamentos.
E agora,
Que deveríamos tomar um último porre juntos,
Só conseguimos
(nos perdoe essa última ofensa)
Lhe brindar com nossas taças quebradas,
E esse estranho pranto seco.

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3 Comentários

  1. Quanto saudosismo. Mas pelo que entendi, seu colega ainda está vivo, então liga para ele e relembrem essa época de suas vidas, tomando umas geladas e rindo muito de tudo isso.
    Ah, e a cerveja fica por sua conta, como bom anfitrião que deve ser.
    Maurício.

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    1. obrigado pelo comentário, Maurício. Nós ainda mantemos contato, volta e meia tomamos umas geladas juntos, a última foi há coisa de um mês. E, claro, sempre relembramos histórias antigas, já que as esposas não concordam em que construamos novas histórias.
      abraço.

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