Pequeno Conto Noturno (59)

Duas e dezessete da madrugada. Rubens na sacada. Queimando fósforos. Um atrás do outro. Para distrair o pensamento. Para se distrair do pensamento. Para deixar que a Insônia, à sua espera na cama de casal, pegue no sono e ele não tenha que de novo trepar com ela. Queima fósforos. Há tempos não tinha uma caixa de fósforos em casa. Não fuma. Não cozinha. Além disso, para a feitura do café, sua última habilidade culinária, a chama do fogão se acende por ignição elétrica. Queima fósforos e bebe. Porque não há nada a se pensar. Ou, pelo menos, porque pensar sobre as coisas não altera em nada a natureza ou o rumo delas.
Enganam-se os dicionaristas quando definem "coisa" como algo inanimado. Coisas têm vontade própria. Queima fósforos. Porque achara a caixinha na rua, na volta do mercado. Queria que o mercado ainda estivesse aberto. Calculara mal o quanto iria precisar de cerveja hoje. E também de fósforos.
Rubens encanta-se com cada inicial explosão da cabeça do fósforo - o barulho, o lume (a iluminação) e a névoa (o obscuro, o mistério) coexistentes, simbiontes -, o lampejo, a beleza e a fugacidade gerados pelo atrito, pelo incômodo, pelo conflito, pelo exaspero entre a cabeça do fósforo e a lixa da caixinha, que é o único lugar em que há o elemento fósforo (P), na cabeça do palito só há pólvora. Não é o fósforo que fosforesce ao som do último blues. São o carvão, o enxofre e o salitre, lacaios da luz, suas buchas de canhão, peões de manobra. O fósforo apenas lhes inspira, lhes traz a informação para a luz, é Lúcifer nas trevas do Céu, do Paraíso dos obedientes e cordeiros a deus, pensa Rubens, que, mais uma vez, percebe que sua tentativa de fuga ao pensamento fora malfadada.
Rubens toma mais um grande gole e risca outro fósforo. Fiat lux! E um novo nanouniverso de fótons, que continuará ad infinitum em expansão, é criado. Fiat Lux! Embora os fósforos sejam da marca Paraná.
Rubens segura o fósforo e deixa o fogo consumi-lo em toda a sua extensão. Deixa que a chama se aproxime o mais possível, ou mesmo lamba as pontas de seus dedos indicador e polegar, mas coloca o palito a queimar na vertical, com a cabeça para cima, assim seus dedos são tocados pela parte inferior da chama, aquela mais azulada, com pouquíssimo calor. Sete anos de uma inconclusa faculdade de Química teriam, afinal, que se prestar àlguma coisa, pondera Rubens. Acende outro fósforo e brinca com o fogo sem se queimar. Brincar com fogo sem se queimar... o passatempo predileto de Rubens, porém, não sua maior especialidade, muito pelo contrário.
Vai à cozinha e volta com uma dose de rum no copo e a garrafa destampada na mão, as cervejas já eram, e o rum, além do que está no copo, só se bastará a uma outra dose. Pensa que sempre gostara de brincar com fogo. Em todas as possíveis interpretações e conotações. Literalmente, inclusive, que é como começa tudo, literalmente, ao pé da letra, só depois é que as coisas se complicam.
Quando criança, muita aprazia a Rubens atear fogo a terrenos baldios, cheios de mato e de lixo, cuja limpeza era negligenciada ou por seus donos, ou pelo eterno descaso da administração pública. Não podia ver um terreno abandonado que a chama da criação lhe dominava, que já planejava a sua limpeza, a sua purificação pelo fogo. Seu modus operandis favorito era pegar uma embalagem plástica - as garrafas verdes de água sanitária eram as melhores -, enfiá-la em um galho de árvore, tacar-lhe fogo e ir andando com ela pelo terreno baldio. Cada gota do plástico derretido que caía criava um pequeno foco de incêndio, cada gota, uma lágrima de estrela cadente, cada gota, uma migalha deixada a marcar o caminho de volta de João e Maria, em uma bela época em que os labirintos não possuíam GPS. Só Minotauros.
A vizinhança reclamava e várias foram as surras que Rubens levara por conta de sua piroidolatria. Mas ver as labaredas dançando, crepitando, se entregando a afogueada orgia, valia cada marca ou vergão de chinelo, ou de cinta, nas pernas e na bunda.
Rubens pega dois palitos de fósforo. Fecha a caixa. Um, ele enfia entre o compartimento dos palitos e a tampa, posiciona-o em ângulo; o outro, ele risca, acende e aproxima lenta e cuidadosamente do outro; assim que a cabeça flamejante toca a outra, transfere-lhe a beleza e a morte rápida; as duas cabeças colam, Rubens larga do fósforo e os dois continuam grudados cabeça a cabeça, feito cachorro engatado em cadela de rua. Os dois vão sendo consumidos, e o que está suspenso, enquanto queima, vai se envergando para cima, uma ereção, até que nada mais resta dos dois.
Rubens pega então quatro palitos. Fecha a caixa. Enfia dois palitos prensados nas laterais da caixa, como se as traves de um gol; encaixa outro entre as traves, o travessão; acende o quarto palito e leva sua chama de encontro às duas cabeças, a do fósforo-travessão e a do fósforo-trave. O incêndio provoca um deslocamento de ar e o palito-travessão é catapultado para longe.
Rubens abre a caixa de fósforo, pega mais três palitos, fecha a caixa. Quebra um palito rente à cabeça e joga o corpo fora. Coloca a cabeça junto à cabeça do outro palito e as enrola fortemente com uma tira de papel laminado. Aperta o papel na parte de baixo e enrola-o na parte de cima, formando uma ponta cônica, um pequeno foguete. Posiciona o foguete entre a tampa da caixa e o compartimento dos palitos, procura posicioná-lo em ângulo de 45º, o que faz o projétil cobrir a maior distância horizontal, segundo as aulas de Física do Colegial. Acende o terceiro fósforo e põe a chama na ogiva, que vai aquecendo até que as duas cabeças dentro do laminado se inflamam e o ar é propelido para trás num silvo e o foguete, a obedecer a 3ª Lei de Newton, para a frente, para o alto e avante, deixando um rastro de fumaça e cheiro de pólvora queimada. Atravessou os limites da sacada - esse foi dos bons, pensa Rubens -, indo pousar no jardim abaixo.
Rubens entorna a garrafa, põe o último suspiro do rum no copo e vira-o de uma vez. Uma espada enferrujada de pirata a lhe varar o esôfago.
Três e doze da madrugada. Rubens veste uma calça, enfia uns trocados no bolso de trás, coloca uma camisa que tira da pilha de roupas sem passar e sai do apartamento em direção a um posto de combustível para comprar mais meia dúzia de latas. Já do lado de fora do apartamento, no meio do segundo lance de escadas, estaca e volta. Entra no apartamento, pega a caixa de fósforo e a enfia no bolso. E sai.

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4 Comentários

  1. Esse texto até parece a história de um rapaz que eu conheço em sua infância/juventude. Mas deve ser coincidência. Porque se fosse o garoto que conheço ele teria enfiado a caixa de fósforo no rabo.
    Bela estória, ainda bem que já passou o natal.
    Marcelo

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    1. um garoto que você conheceu em sua infância teria enfiado uma caixa de fósforos no rabo? E quem é que acendia pra ele? Você? Boas amizades as que você tinha, hein?

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  2. Muito bom mesmo, esperando continuação.
    "J"

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