Pequeno Conto Noturno (43)

Em um daqueles cochilares do deus Cronos, em um daqueles dobrares de esquinas que nos lança a outra linha temporal, e não simplesmente a outra rua, em uma daquelas madrugadas, de céu lilás, em que os bueiros transpiram vapores de café recém-coado ao invés de pútridas emanações, Rubens esbarrou em seu passado. Com uma parte dele. Uma parte boa e rara : Yrina.
Embora regido pelo Acaso, o reencontro, não houve nenhuma manifestação de surpresa; nem da parte de Rubens nem da de Yrina. Porque nenhuma surpresa havia a ser manifesta. Seus encontros eram de tal forma naturais à época em que conviviam que surpresa foi o afastamento, antinatural foi o desligamento, o não mais ver.
Não só isso, irrelevante a longa data há que não se viam, sempre que saíam às ruas em suas vidas separadas, fossem para onde fossem, ao trabalho, ao mercado, à biblioteca, à procura de novos amores, imaginavam que encontrariam o outro pelo caminho.
Não houve surpresa no reencontro. Surpresa sempre houvera nos milhares de desencontros.
Até que em um dia, não feito um sonho sonhado concomitantemente por mil gatos, mas como um sonho sonhado milhares de vezes por um só gato, o reencontro se deu.
Se o esbarrão com o passado fê-los - a ambos, ou a só a Rubens, ou só a Yrina - vislumbrar uma possibilidade de futuro, nunca saberemos. Mais provável que não tenham lhes ocorrido tais cogitações, que tais considerações venham mais do desejo piegas deste narrador em vê-los juntos, narrador que deveria limitar-se à sua mera condição de vigia, do que das tramas e tramitações do velho safado, encarquilhado, banguelo e verruguento que costuma atender pelo nome de Destino.
E caminharam, Rubens e Yrina, pelas ruas do velho centro - de paralelepípedos, com nomes de presidentes -, como se fosse sábado, como se fosse mágica, como se ouvissem música, e agradecidas lhes ficaram as ruas, por tornar alguém nelas a caminhar.
E se sentaram, Rubens e Yrina, aos bares que ainda havia para se sentar, tomaram as cervejas relegadas aos fundos das geladeiras, com as quais ninguém quis formar par. Quantas? De que marca? Estavam geladas? Quanto deu a conta?
E antes que o dia raiasse, e lhes desnorteasse os caminhos, rumaram ao apartamento de Rubens, para a saideira e o clássico café; Yrina a cantarolar "Choro Bandido", do Chico, e Rubens a entoar mentalmente "À Distância", do Roberto.
- Rubens... - fala Yrina, Rubens de costas, indo à cozinha pegar as bebidas.
- Diz... - responde Rubens
- Eu te amo, Rubens. Seja lá o que isso signifique.
- Significa - começa a dizer Rubens, voltando da cozinha com duas doses de vodka e tônica - exata e unicamente o que você disse 'Eu te amo'. Sem mais nem o quê.
- Sem implicações, sem desdobramentos? Como um 'eu te amo' pode ser um evento isolado, alheio e imune ao que o cerca?
- Nem isolado nem alheio nem imune. Autossuficiente.
- Explique-se, meu caro, embora eu esteja quase certa de que não gostarei da explicação.
Rubens retorna à cozinha, reabastece os copos e volta.
- É a velha insatisfação humana, minha cara. Num primeiro instante, o sujeito diz 'Eu amo" e vai dormir felizinho da vida. Pouquíssimo tempo depois, isso não mais lhe basta, pior, começa a lhe causar desconfiança, apreensão, quer saber por que ama, de onde isso surgiu, para onde o levará.
- E não é normal, ocupar-se dessas questões?
- É comum. Mas longe de ser saudável, racionalizar o impulso, o instinto, o irracional.
- Ainda não percebi onde você quer chegar...
- Aí é que está a verdadeira questão; nesse caso, a falta dela. Um 'eu te amo' não é para chegar a nenhum lugar. Nem vem de algum. Se pudesse haver um ilha, que, de tão isolada, nem água tivesse a lhe cercar por todos os lados, figuraria nos mapas como a ilha 'eu te amo'. Não existem vias de acesso ao 'eu te amo', muito menos rotas de fuga. 'Eu te amo' não é uma rodoviária, um ponto nevrálgico de chegadas e partidas. 
Um 'eu te amo' é a coisa per si. Sem destinos nem destinações. Ou, como bem resumiu e grafou em definitivo Mário de Andrade : Amar, Verbo Intransitivo. Aquele que não requer ou carece de complemento.
Adereçá-lo não só é desnecessário como também inútil e, principalmente, temerário. Corre-se o risco de mudar-lhe o foco, opacificá-lo com tantos balangandãs, sabotá-lo em seu sentido intrínseco e  intransferível.
- Até parece, né, Rubens... quem ouve até pensa que você é romântico assim.
- E sou. Numa intensidade capaz de estourar toda e qualquer escala de autocrueldade.
Rubens se levanta e vai para a cozinha mais uma vez, agora para passar um café.
- Yrina... - diz Rubens, do meio do caminho
- Sim...
- Sabe essa coisa do 'eu te amo'?
- O que tem?
- É recíproco, viu? Recíproco pra caralho! Sempre será. Seja lá o que 'sempre' signifique.

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1 Comentários

  1. Yrina tem un gato sib o luar em suas espáduas, o gato sonha milhares de vezes com o reencontro e no momento mais desesperançoso o encontro se dá . Yrina tem a própria versão da trombada, do sonhado e inesperado. Um dia ela contará. E o tingirá de nuances lilases, azuis e principalmente vermelhas. Vermelhas vivas, carmim exultante por finalmente deixá-lo existir.

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