Não Sabe Fazer o "Ó" com o Cu

Era para ser apenas mais um dia de minha sem significado e inútil labuta, apenas mais um dia de fingimento, de encenação de meu ofício - outrora nobre e edificante, hoje um misto do castigo de Sísifo com o de Prometeu, penalidade que nem mesmo os deuses gregos - exímios e requintados punidores - puderam conceber, ou que, ao menos, nem eles próprios, longe de serem famosos por sua benevolência, tiveram coragem de impingir a um vivente.
Mas não. O dia de hoje foi especial. Um dia coroado.
O ambiente : uma sala de 2º ano do ensino médio, o antigo e saudoso colegial, alunos na faixa etária dos 16 anos, predominantemente de classe média, todo mundo bem nutrido, de banho tomado, roupinha lavada, celularzinho no bolso etc etc. Ou seja, nenhum motivo ou desculpa para o baixo nível de escolaridade, para o cada vez mais frequente semianalfabetismo.
A aula : Trocas de calor em recipientes termicamente isolados. Tão somente um nome pomposo para um fenômeno natural dos mais simples e corriqueiros : dois ou mais corpos, cada qual com suas respectivas massas, seus calores específicos e suas temperaturas iniciais, quando colocados em um recipiente que não permite trocas de calor com o meio, e apresentando diferentes temperaturas, trocarão calor entre si até que seja atingido um equilíbrio térmico. Ou seja, o corpo mais quente cede calor para o mais frio.
As aplicações em sala de aula de tal conceito são as mais pobres possíveis, restringem-se a meros exercícios de fixação de uma fórmula, na qual as várias variáveis (todas fornecidas de mão beijada pelo enunciado do exercício, o aluno não tem que "descobrir" nada) são substituídas para que se encontre a temperatura final do equilíbrio térmico.
É ler o enunciado e ir encaixando a massa do corpo, a temperatura inicial etc na fórmula, o que sobrar é a grandeza a ser calculada. É ler e fazer as continhas, "de mais", "de menos", "de vezes" e "de dividir". Saber a tabuada e contar nos dedos mostrariam-se o suficiente para tais exercícios.
E aí é que a porca torce o rabo. Ler? Só mensagem de texto no celular e olhe lá. Decorar a tabuada? A maioria se complica até na tabuada do 1. Contar nos dedos? A grossa massa desses adolescentes até já se esqueceu de que possui 5 dedos em cada mão, uma vez que apenas um é o suficiente para ele se comunicar com o mundo via seu celular.
Até o exposto, tudo bem. Tudo bem, não, mas tudo normal, tudo dentro do comum e esperado. Mas hoje, como eu disse, foi especial.
Eu passara lá um exercício de trocas de calor, o mais fácil que pude achar no livro, dei um tempo para que a sala tentasse fazê-lo (por sala, entenda três ou quatro alunos de um total de 40 ou mais) e pus-me, em seguida, a corrigi-lo no quadro-negro.
Numa dada passagem da correção, um aluno se manifestou, 'professor, não estou entendendo esse negócio aí'. A passagem em questão era : 400 x 0,11 x (Tf - 230)
Devolvi-lhe a pergunta em seus próprios termos : 'que negócio?'. Na minha santa ingenuidade, pensei que a dúvida fosse em relação a algum dos conceitos trabalhados, calor, temperatura, o significado do calor específico, enfim...
Não era. 'Esse negócio aí', tornou o aluno, 'que vem logo depois do 400'. O "negócio aí" era o 0,11, o calor específico do ferro. 'E o que você não está entendendo?', insisti. Aí veio a chave de ouro : 'Isso aí é um zero antes da vírgula ou é um "ó" (a letra o, pasmem). 
Pããããããta que o pariu!!!! A dúvida do apedeuta era se o termo que sucedia o 400 era zero vírgula onze ou "ó" vírgula onze.
Quis fazer o que fez o corno de um dos clássicos do sertanejo : me perguntou, por quê?, mas eu não respondi, só pra não te ofender, disse adeus e parti. Se eu pudesse dizer adeus e partir, teria-o feito na mesma hora; aliás, nem diria adeus, apenas partiria. Não posso. Não posso igualmente furtar-me a dar uma resposta. Ofender o educando, então, nem pensar. É crime inafiançável perante o Estatuto da Criança e do Adolescente. De onde se vê que há destinos muito piores que o de ser corno.
Respondi-lhe : 'Faça o teste, multiplique 400 por "ó" vírgula onze e me diga o resultado'.
Ele, óbvio, não efetuou a bizarra operação alfanumérica. Se bem que não a teria efetuado ainda que eu tivesse lhe pedido para que calculasse 400 multiplicado por 0,11, não sem o auxílio nada luxuoso, e emburrecedor, de uma calculadora, aparato cujo uso é vetado em minhas aulas.
"Ó" vírgula onze... E esse nem é dos piores da sala, pelo contrário.
À minha época de jovem pupilo, dizia-se do incapaz, ele não sabe fazer o "ó" com o cu.
Décadas depois, ele continua sem sabê-lo. Mas especializou-se : hoje, ele também não sabe fazer o zero com o cu.

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2 Comentários

  1. Dureza é pensar que alguns desses manés se acham o "Ó do borogodó"

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  2. Esse causos do dia a dia são uma graça, lembram-me da minha época de escola. Quando criança era boa aluna, comportada e até inteligente rsrs. Quando adolescente não era diferente do nosso amiguinho, dei mto trabalho, matei mta aula, fugia da escola... Ainda bem que o destino não me colocou na sua turma. (risos)
    PS: outro dia te conto algumas das minhas peripécias.
    "J"

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