Festival Do Corno

Salvos os casos verdadeiramente traumáticos de rompimento amoroso - aqueles de causar fratura exposta no chifre e AVC na honra -, acho que, vez em quando, a todo mundo assalta a vontade de rever um antigo caso.
Um reencontro sem nenhuma maldade ou intenção posterior, uma pequena recaída, sem febre, sem a menor chance de adoentar, muito menos pôr em coma, o atual relacionamento. Um ato civilizado, em suma. Só sentar, conversar, tomar um café - cerveja ou qualquer outra poção etílica seria abusar da sorte, ou da falta dela -, saber o que os anos fizeram um ao outro; duas pessoas que, não obstante não mais amantes, em inimigos não se tornaram.
Mas como convencer à atual adversária da inocuidade dessa pequena, digamos assim, recidiva de catapora emocional - e também se deixar convencer por ela, pois o troco é certo? E que tal incrementar um pouco mais a situação? Que tal estabelecer um dia do ano para essa revisita ao passado sentimental de cada um, que tal marcar uma data em vermelho no calendário para retirar da gaveta as velhas fotografias, que ainda que saibam a naftalina e a amarelos, só mostram os bons momentos? Na fotografia, sempre estamos felizes, como já disse o bom e velho Chico Buarque. É um risco. O risco da cornagem consentida.
, porém, um risco muito maior que o da cornagem de comum acordo e, óbvio, que o do cair na maledicência do povo, que essa sempre vem, sendo você corno ou não. É o risco de você perder o jogo de goleada. Vai que a ex dele continue toda bonitona, gostosona e desejável e o seu ex tenha ficado gordo, careca e broxa, ou vice-versa? Essa derrota, sem prorrogação nem direito a pênaltis, é o que mais vai lhe doer pelo resto da vida, o passado do outro permanecer melhor que o seu é de lascar.
Logo, pelo menos em nossa sociedade, esse reencontro com o ex continuará a se dar apenas em nossa imaginação, e o faremos com todo o zelo, com o cuidado de não pensarmos alto.
Acontece que o ser humano é plural, diverso, multicultural etc, toda essa bobajada politicamente correta, mas, principalmente, o bicho humano é engenhoso e profícuo em arrumar maneiras de cornear o outro - e também, em contrapartida, criar jurisprudências para ser corneado, no que, paciência, só resta se apegar ao dito, chifre trocado não dói. Ou se dói, é dor da qual não se pode queixar, é dor que se há de fingir que deveras não se sente.
Pois um pequeno povoado do Vietnã resolveu esse impasse. Encontrou uma solução genial para tal dilema e todos os anos, no terceiro mês do calendário lunar, vários habitantes da fronteira de Taiwan com a China se reúnem na vila Khau Vai, para conversar com ex-namorados. Por mais inacreditável que possa parecer, brigas são eventos raríssimos nessa reunião, não há notícias de tiros, facadas, tampouco chifradas letais.
Esse brilhante povo se refugiou numa antiga lenda local para justificar essa pequena escapadela sazonal, subterfugiou-se na lenda, ou, quem sabe?, a lenda tenha sido criada justamente com esse propósito; do ser  humano, toda sacanagem pode ser esperada.
A lenda conta mais ou menos o seguinte :  uma garota da tribo Giay teria se apaixonado por um rapaz da tribo Nung. Mas a moça seria tão bonita que sua comunidade proibiu que ela se casasse com um forasteiro, o que gerou uma guerra entre as duas etnias.Vendo a tragédia, os dois pombinhos resolveram se separar - mas combinaram que, uma vez por ano, eles se encontrariam na vila de Khau Vai. A tradição se mantém até hoje e os ex-namorados se vestem com cores vibrantes, que simbolizariam o amor proibido. 
Um participante chamado Lau Minh Pao conta que encontra sua ex-namorada lá todos os anos e que conversam sobre o tempo em que namoravam, sem ressentimentos. "Não pudemos nos casar porque morávamos longe um do outro, agora nós derramamos nossos corações sobre o tempo, quando nós estávamos enamorados", explica o vietnamita que hoje é casado com outra mulher. Ele garante que sua atual esposa não tem problemas com o festival - ela também encontra seu ex-namorado por lá, também está, ao mesmo tempo que Lau Minh Pao, derramando seu coração sobre o tempo. Sem nenhuma culpa ou constrangimento.
É a feira livre da cornagem. É o mercado de peixe do boi zebu. É o festival do corno. E lá se reúnem as cornagens antigas, as atuais e as vindouras; as curadas, as em carne viva e as ainda em embrião. Sim, porque num lugar desse, velhos ressentimentos podem ser perdoados, afinidades esquecidas, restauradas. O corneador pode virar corno de quem corneou, o corneado pode tornar em corno quem o corneu com quem fora corneado, e vice-versa, e pelo avesso, e assim por diante, ad infinitum, a mancheias.
Abaixo, um instantâneo do festival do corno, todo mundo de turbante, que é para disfarçar o chifre, aquele chifrinho incipiente, feito um dente do siso a romper a fronte do sujeito, chifre de viadinho novo.
Bem já dizia o Seo Israel - o velho bedel do colégio onde concluí meu colegial - tentando ajudar, quando reparava num aluno meio cabisbaixo e macambúzio por conta de um pé na bunda, vergado sob o peso do calendabro judaico instalado em sua fronte : "fica assim, não, menino, que chifre é mesmo coisa do homem, o boi usa é de enxerido".
É claro que não ajudava em nada, o Seo Israel. Aí é que o cara desmoronava de vez. E o Seo Israel sabia disso. Por experiência própria, o velho safado.

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