A Montanha

Gosto da mitologia grega. Como mitologia em si, e só. Como um grande e incrível compêndio de lendas, deuses, semideuses, heróis, ninfas e putaria generalizada.
Nada tenho, além de um enorme asco, com o uso pretensamente intelectual que fazem dela certas áreas do chamado conhecimento humano, psicologia, filosofia, e similares e genéricos, querendo atribuir a cada personagem um modelo do comportamento humano, um arquétipo, ou qualquer outro nome que usem.
Como se o povo grego tivesse concebido seus deuses com vistas a essas picaretagens acadêmicas. Como se cada mito houvesse sido cuidadosa e propositalmente construído com função educativa, moralizadora etc. Não foram, claro que não foram.
Os deuses e mitos são construídos para explicar magicamente o que racionalmente não se consegue, e só. Como exercícios imaginativos de cientistas canastrões, todas as mitologias me interessam. A questão é que quem tem imaginação, cria; quem não, pega o que foi criado por outrem e lhe dá nova "interpretação", apropria-se quase na categoria de coautor, e passa a viver disso.
O que mais gosto na mitologia grega é que os deuses não são oniscientes e infalíveis, frequentemente um e outro humano mais esperto os enganam, fazem os deuses de idiotas. Mas deuses são deuses. Suas vinganças são malignas. Gosto muito também da parte dos castigos infligidos aos humanos, quando são pegos com a boca na botija.
Os deuses gregos são iracundos e exímios punidores. Seus castigos têm uma carga de crueldade e sadismo dos quais apenas os deuses são capazes. São de enlouquecer. E, mais uma vez, esses castigos nada carregam de função educativa e exemplar a uma humanidade indisciplinada, não são de caráter coletivo, que dirá, universal. Os castigos dos deuses são de mira certeira, são direcionados unicamente ao infeliz que aprontou alguma com eles, os castigos dos deuses são visceralmente pessoais.
O castigo dado a Sísifo é um de meus prediletos. Sísifo não foi pouca merda, não. Filho de Éolo, rei da Tessália e suposto pai de Ulisses, Sísifo simplesmente alcaguetou Zeus, quando este raptou a filha do deus dos rios, enganou e aprisionou Tanatos, e ludibriou Hades.
Foi quando Hermes decidiu acabar com a zona e infligiu a Sísifo um castigo pior do que a morte : Sísifo foi condenado para todo o sempre a empurrar uma pedra até ao cimo de um monte, caindo a pedra sempre que o topo da montanha era atingido, invariavelmente. Este processo seria repetido por toda a eternidade. Espertíssimos, os deuses. Talvez o pior castigo para um humano seja mesmo a rotina improdutiva.
Imaginemos esse castigo aplicado a algumas profissões.
O pedreiro, por exemplo, ergue uma parede durante um dia inteiro, quando volta para continuar a obra no dia seguinte, a parede não está mais lá, os tijolos estão todos soltos, como se nunca alguém os tivesse perfilado e cimentado. Dia após dia, a mesma coisa. Indefinidamente. Quanto tempo sem enlouquecer?
O médico, a outro exemplo, opera hoje o apêndice estuporado de um sujeito, extrai, faz a assepsia, costura certinho e tudo, dá alta pro cara; no dia seguinte, o mesmo sujeito aparece com o mesmo apêndice a lhe incomodar, nem sinal da cirurgia, nem uma cicatriz, e o médico tem a certeza de que tudo foi feito. Dia após dia, o mesmo apêndice a lhe assombrar. Quanto tempo antes de começar a babar verde e trocar o jaleco pela camisa de força?
Mas são impossíveis tais ocorrências, ou melhor, recorrências, certo? Com o médico e com o pedreiro sim, que são uns afortunados, cada um a seu modo.
Com o professor, no entanto, é a exata descrição de sua faina.
O professor chega, todas as manhãs, com a sala lotada e sonolenta, e ergue sua parede, seu murinho cotidiano; no dia seguinte, nada há mais lá, nem vestígio da parede à qual outra e mais outra iriam se juntando até a edificação final. Pior : não há nem mais os tijolos para ele pacientemente rejuntar.
O trabalho do professor é uma casa que não tem teto, não tem nada, não tem chão, não tem dormir na rede, não tem parede, nem penico tem ali. Mas não tem nada de muito engraçada, a labuta do professor.
O policial também, creio, vive situação semelhante, ele prende o bandido hoje e o mesmo filho da puta já está na rua amanhã.
Por que todo esse blá-blá-blá agora, domingão brabo, um crepúsculo seco, poeirento e fuliginoso? Porque amanhã o inferno está de volta, a montanha se porá mais uma vez à minha frente, intransponível.
Para minha sorte, para meus consolo, alento e sono (quase) tranquilo, Zeus, que não é tão mau assim, concedeu-me um fígado de Prometeu, a cujos poderes eu recorro diariamente, em prol de minha pouca sanidade.

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2 Comentários

  1. Eu já lhe disse: dar o toba deve ser pior do que dar aula. Por isso que tenho dó de professor que é veado!
    Mas...tome uma CAJUÍNA...só prá relaxar!

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    1. Rapaz, dessa vez quase você se entrega. Mas acabou se saindo bem com o "DEVE ser pior"

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