Pequeno Conto Noturno (8)

Ele checa os molares superiores, todos intactos e firmes, idem com os inferiores, nenhum quebrado ou vacilante.
O interior da bochecha, ao contrário, está em panderecos, a mucosa aberta em dois cortes desbeiçados, o sangue tinge os entredentes, mas Rubens gosta de seu gosto doce-ferruginoso, sempre gostou; não cospe o sangue, sorve, não quer desperdiçar tão vital substância.
Não há água oxigenada em seu armário de remédios para a assepsia, há vodka em sua geladeira, Rubens enche a boca e faz um bochecho.
Dor ardida e excruciante, parece cortar mais que o murro que quase o nocauteou, mas é dor bem-vinda.
Se arde é porque está matando os germens, se dói é porque está sarando, sempre ouviu dizer de sua mãe e avós, a cura via dor e sofrimento, purgação, catolicismo aplicado à medicina, Rubens não é católico, mas a dor católica a lhe tomar as bochechas o conforta.
Ele mantém a vodka na boca, até a dor ser trocada lentamente pela anestesia, pela dormência que o álcool impõe aos tecidos.
Não cospe a vodka. Engole-a. Cheia de sangue, o verdadeiro Blood Mary, pensa Rubens.
Há noites em que nada pode prestar, nas quais todos os indícios gritam para que fiquemos em casa.
São as noites às quais Rubens não consegue resistir.
Rubens sabia que era dessas noites quando resolveu pôr pé à rua, sabia que era dessas noites quando abordou a dona que se oferecia a ele à luz de um blues, sabia que era dessas noites quando entrou no apartamento da dona e começaram a meter, sabia que era dessas noites quando a dona, cavalgando seu pau, pediu para que lhe batesse na cara e ele bateu e a dona uivou, lanhando as próprias coxas com as unhas longas, sabia que era dessas noites quando a dona perguntou se também podia lhe bater e ele concedeu.
A dona calçou um soco inglês, estrategicamente oculto por debaixo dos lençóis, e lascou-lhe uma porrada, no capricho, agarrou-lhe pelas orelhas, colou sua boca a dele e tomou-lhe o sangue, a buceta da dona mascou o pau de Rubens, ela gozou e desmaiou, de gozo, sangue e excesso de álcool.
Rubens não podia ficar no prejuízo, pôs a dona desfalecida de bruços e varou-lhe pelo cu, igualando os estragos causados em sua boca. Em revanche, em justiça, em punição.
Mulher maluca, lembra Rubens.
Faz ainda dois ou três bochechos de vodka, volta a garrafa para a geladeira, se deita e adormece fácil.
Adormece o sono limpo que só têm os bebês, e os justiceiros.

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