Paraíso das Hienas

Meu pai possuía uma fita cassete, da marca TDK, com a gravação de um show do genial Juca Chaves. Tempos depois, essa fita ficou em meu poder e, em seguida, acabou por passar para as mãos de meu irmão mais novo. Hoje, nem sei se ela ainda existe ou se está em condições de ser reproduzida, o que pouco importa, pois tantas foram as vezes que eu a ouvi que há um registro fonográfico dela em minha cabeça.
Das situações cômicas narradas na fita pelo Juquinha, uma das que mais gosto é a da excursão dos escoteiros pelo Jardim Zoológico, devidamente acompanhados por um guia. De cara, Juca Chaves destila seu refinado veneno e nos dá a melhor definição de escoteiros que escutei na vida : "escoteiros, vocês sabem, são aquele bando de meninos fantasiados de idiotas comandados por um idiota fantasiado de menino". E segue com a história : uns escoteiros passeavam pelo zoo e o guia seguia a lhes apresentar os animais em exposição, o elefante, a girafa, o camelo... até que chegaram ao recinto das hienas. Aqui temos um animal dos mais curiosos da natureza, começou a explanar o guia, a hiena. A hiena é um animal que se alimenta dos restos de outros animais, acasala apenas uma vez por ano e também é um animal que ri muito. Nisso, um escoteirinho mais sagaz, em toda turma sempre tem um capeta (ainda bem), pergunta ao guia : a hiena come merda e trepa só uma vez por ano, ela ri do quê?
Do que riem as hienas? É uma das questões filosóficas mais indissolúveis da História. Tivesse sido esse o enigma proposto pela Esfinge a Édipo, sob a ameaça do "decifra-me ou devoro-te", o mitológico ser alado com corpo de mulher e leão teria feito uma lauta refeição, e Édipo não teria comido a própria mãe.
Lembro-me frequentemente desta história da fita do Juca Chaves em meu local de trabalho, mas hoje, mais especificamente, ela aflorou em minha decadente memória quando li a publicação dos resultados do terceiro relatório "World Happiness Report", divulgados na quinta-feira (23/04), pela Sustainable Development Solutions Network (SDSN), entidade que se propõe a "medir" a felicidade dos povos e divulgar a lista dos mais felizes. Medir a felicidade? Tem gente muito desocupada no mundo, e ganhando uma grana fácil nessas porras de pesquisas. O Informe Mundial sobre a Felicidade 2015 pretende quantificar e explicar o bem-estar em 158 países com o objetivo de influenciar as políticas governamentais em todo o planeta.
Os dez primeiros da lista são os felizes com razão, os felizes por justa causa : Suíça, Islândia, Dinamarca, Noruega, Canadá, Finlândia, Holanda, Suécia, Nova Zelândia e Austrália. Ou seja, são povos que trabalharam duro para alcançar as excelentes condições de vida que hoje possuem, estudaram, disciplinaram-se, aperfeiçoaram-se, transformaram-se em gente, enfim.
Abaixo da décima posição - o relatório indica apenas os 25 países mais felizes do planeta - aparecem algumas hienas, alguns países que, a exemplo do selvagem e carniceiro animal, devem ser seriamente estudados e investigados, para que se determine do que tanto riem : Costa Rica (12ª posição), México (14ª posição), Brasil (16ª posição), os três à frente do Reino Unido, França e Alemanha. Em 23º lugar, aparece ainda a Venezuela, país que vive sob uma ditadura e com sérios problemas de escassez, até papel higiênico falta por lá de vez em quando, mas também para que papel higiênico se a maioria da população nem come?
Antes de perguntar do que o brasileiro tanto ri, perguntei-me quais são os critérios utilizados nessa utílissima pesquisa para quantificar o nível de felicidade desse ou daquele povo. São seis as variáveis : PIB per capita, expectativa de vida saudável, alguma pessoa com quem contar, percepção de liberdade, corrupção e generosidade das pessoas. 
O PIB brasileiro é um dos maiores do mundo, o país ocupa a sétima posição na economia mundial; porém, o salário minímo é de 788 reais, menos de 300 dólares. O país é rico, mas o povão é miserável. Será, então, mais um clássico caso de "gozar com o pau do outro"? Eu tô na merda, mas meu país é campeão, então, sou feliz pra caralho. 
A expectativa de vida do brasileiro está em 72 anos, mas saudável? Passem por um hospital público, vejam e depois me contem.
No caso do quesito da percepção de liberdade, o enrosco está justamente na palavra percepção, o brasileiro confunde liberdade com bagunça, com anarquia, com falta de respeito ao espaço do outro. O cara acha que porque ele pode, por exemplo, botar música alta de madrugada e atrapalhar o sono do vizinho, ele tem liberdade, porque ele pode, impunemente, xingar, desacatar e até agredir fisicamente um professor ou diretor de escola, ele tem liberdade. O brasileiro não tem liberdade, apenas é dado a ele, por leis mal-intencionadas, o direito à bagunça; e a indisciplina institucionalizada, tornada em caráter e cultura nacionais, é a maior prisão a que um povo pode ser submetido, a pior das ditaduras. 
Corrupção? Só esse critério já bastaria para nos colocar nas últimas posições do ranking dos felizes, ou nas primeiras do dos infelizes. Mas pelo visto o brasileiro não se considera um povo corrupto, nem que suas vidas sejam afetadas negativamente pela corrupção de seus governantes. Acho que essa pesquisa só pode ter sido feita entre afiliados e militantes do PT. Ou pior : o brasileiro sabe da corrupção em seu país, sabe que todas as leis, todos os sistemas e órgãos públicos são corruptos e induzem à corrupção de seus usuários, porém, ele, o brasileiro, acha que ser corrupto é ser esperto, que ser honesto é ser idiota, afinal, não é a Lei de Gérson, o levar vantagem em tudo, a nossa lei maior, a nossa Magna Carta? O brasileiro sabe da corrupção que o rodeia, mas não a classifica como  um critério de infelicidade; pelo contrário, só está esperando a sua vez para também se beneficiar de algo indevidamente, só está a aguardar uma boa teta para mamar.
Talvez o segredo de nossa felicidade esteja, enfim, na última váriavel, que seu alto índice tenha gerado uma média que nos colocou em 16º do mundo do coro dos contentes : a folclórica generosidade do brasileiro. Somos um povo amável, hospitaleiro, acolhedor, cordial por natureza, certo? Porra nenhuma. O Brasil é o campeão mundial, é o primeiríssimo lugar do planeta em número absoluto de mortes por homícidio; a Índia, com uma população de um bilhão de habitantes a mais que a nossa, é o segunda colocada nessa modalidade, com um número de homícidios que não chega à metade do nosso.
Agora, sim, pergunto : do que as hienas riem tanto? Do que o brasileiro ri tanto?
Siimples. Se a hiena come merda e passa a vida a rir, não há mistérios : ela gosta de merda. Querem fazer uma hiena rir? Deem-lhe merda. O que é de gosto, regalo da vida. E pronto. Do que o brasileiro ri tanto? Ora, ele também gosta de comer merda. Tente oferecer ao brasileiro um prato mais requintado, tente oferecer ao brasileiro uma sociedade mais ordeira e regrada, com a condição sine qua non de que ele próprio também seja mais ordeiro e regrado, tente oferecer ao brasileiro uma escola de melhor qualidade, com a condição sine qua non de que ele também seja um aluno mais aplicado e disciplinado. Ele, o brasileiro, tenham certeza, virará imediatamente as costas a tal banquete. Abrirá sua marmitinha, o seu tupperware, e fartar-se-á, lambuzar-se-á de merda. E morrerá assim, todo cagado, mas felizinho, felizinho.

Em tempo : o título da postagem, "Paraíso das hienas", não é meu, é o nome de uma música de composição de Accioly Neto e interpretada por Jessé, uma das mais belas vozes surgidas na MPB. Abaixo, a letra da canção.
Paraíso das Hienas
(Accioly Neto)
Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as "da Silva"
Campeãs de carnavais
Pois desse lado do beco
O olhar é tão seco, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Oração não voga quando não há vaga
Coração não roga quando só há raiva
E a roupa do corpo três vezes ao dia
Novena não paga ao homem da venda
Não adianta nada, não enche barriga
Subir de joelhos as escadarias

Abençoai as hienas
Principalmente as morenas
Tricampeãs mundiais
Pois desse lado do muro
O jogo é tão duro, meu pai
Que só ter piedade de nós não vale a pena (3x)

Que só ter piedade de nós não vale a pena...

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3 Comentários

  1. Eu gosto muito dessa piada da hiena. Como sempre, você produziu um ótimo texto para refletir. Talvez uma possível resposta às suas indagações esteja na na magnífica frase de Rui Barbosa: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto." Acredito que o brasileiro foi sendo treinado, doutrinado para aceitar e rir-se da merda que come. Por isso, desanimou da virtude e acostumou a rir-se da honra.
    Outra coisa: pesquisa sempre tem como base dados passados. talvez o petrolão ainda não estivesse no horizonte. E felicidade não significa necessariamente humor.

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  2. Te enviei um convite no diHITT!!! Seguindo teu Blog!!! Um abraço!!!
    http://www.luceliamuniz.blogspot.com.br/

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