Desconstruindo Angelina

Sim, Angelina Jolie é uma mutante. Não, sua beleza quase que alienígena não é o resultado dessa mutação, não é seu superpoder cromossômico.
Não estamos no Universo Marvel, no mundo das maravilhas. Aqui, as leis biológicas são draconianas e inclementes. Aqui, uma mutação não lhe dará habilidades sobre-humanas, não lhe conferirá asas, esqueletos de metal nem capacidades telepáticas e telecinéticas. Aqui, via de regra, uma mutação lhe impingirá um belo de um  câncer, ou ao menos uma probabilidade altíssima de desenvolvê-lo.
A mutação de certos genes só não eclodirá em câncer se : a) a pessoa tiver muita sorte de que fatores externos coibam ou retardem o x-gene; a mesma sorte que ela não teve ao nascer com o gene defeituoso; b) a pessoa morrer jovem, antes da manifestação do tumor.
A primeira hipótese, a da sorte que o ambiente compense a falta da mesma no momento de sua concepção e recombinação gênica, descarta-se logo de cara. Não existe a variável sorte na equação da Mamãe Natureza.
A segunda, morrer jovem, um suicídio profilático? Um suicídio completo, provavelmente não. Mas e um suicídio parcial? Apenas das partes do corpo com maior chance de serem afetadas? Amputar os prováveis focos de podridão para que deles o mal não se espalhe, se infiltre e comprometa todo o organismo?
A amputação preventiva - ou proativa, como ela prefere dizer - foi o método de tratamento escolhido por Angelina Jolie para minimizar os 87% de chance de desenvolver câncer de mama e os 50% de chance, desse mesmo câncer, nos ovários; probabilidades funestas dadas pela mutação do gene BRCA1, herdado de sua mãe, que Angelina viu morrer em agonia.
Resolvida em não expor seus filhos à terrível experiência, em 2013, Angelina Jolie amputou as mamas, realizou uma mastectomia dupla e agora, há umas duas semanas (só vi a notícia hoje), submeteu-se a uma "salpingo-ooforectomia bilateral laparoscópica", uma operação preventiva na qual são retirados os ovários e as trompas de Falópio.
E não é simplesmente tirar ovários e trompas, reduzir a chance de câncer e voltar a ter uma vida normal. A tal cirurgia fará a bela Jolie entrar em menopausa precoce e lhe trará todos os transtornos relacionados : ondas de calor, insônia, perda de massa óssea, ressecamento da vagina, depressão, dor nas relações sexuais e queda na libido, sintomas depressivos, entre outros. 
Expor-se a tais contrariedades reais ante apenas a possibilidade de um futuro câncer? Só isso já seria suficiente para alçar Jolie a um patamar de coragem sobre-humana. Mas Jolie não fez isso só por ela, aliás, acredito que ela própria tenha sido o fator menos decisivo em sua radical resolução.
Jolie fez pelos filhos, abdicou de sua condição biológica de fêmea para exercer plenamente, e durante o maior tempo que puder, o seu papel de mãe. Pãããããta que o pariu se isso não vai muito além de qualquer escala de bravura.
Autorizar que o médico passe o serrote em um membro podre, necrosado, gangrenado, já deve ser decisão das mais difíceis e dolorosas. O que dizer, então, de pedir pela amputação de órgãos totalmente saudáveis, só pela possibilidade de que eles adoeçam um dia? 
Imagine você, homem que me lê, se o médico chegasse e lhe dissesse que você tem 80 e tantos por cento de chance de desenvolver um câncer letal nos testículos, nas bolas, nos colhões. E você com filhos pequenos para criar. Mandaria arrancar suas preciosas bolas, ainda saudáveis e que tanto você adora coçar, para aumentar a chance de passar alguns anos a mais ao lado de seus filhos? Teria colhões para mandar extirpar seus colhões? 
Angelina os teve.
Na época da dupla mastectomia da bela, escrevi um texto aqui no Marreta, um dos textos que mais gostei de escrever, e que, agora, de novo, em honra à coragem de Jolie, republico.

Angelina de Milo
A bela, um belo dia, recebeu a notícia de uma rachadura em seu mármore renascentista; eufemismos à parte, uma fenda, uma cratera.
A bela (que, verdade seja dita, não vive mais da beleza, mas que via ela se fez e lhe é inegável e evidente atributo, que ainda a carrega feito uma cicatriz agradável de se olhar, que é isso o que a beleza em demasia é, uma anomalia, uma deformidade agradável de se olhar) foi informada de uma falha em seu gene BRCA1, um fantasma a lhe assombrar com a chance de 87% de desenvolver câncer de mama, de um tipo dos mais selvagens, indomável.
A mesma falha gênica que matou prematuramente a também bela mãe da bela. A bela tem filhos. Pequenos. Quer vê-los crescer sob seus auspícios, não quer gravar-lhes o trauma de uma mãe a definhar e a apodrecer, de não ser mais capaz de ser mãe.
Contar com os 13% de probabilidade do câncer jamais eclodir? Com a sorte? A bela também é inteligentíssima, sabe que não existem essas crendices de sorte; existissem - ou, no mínimo, uma mínima justiça -, e ela não teria nascido com o gene troncho.
A bela não teve dúvidas - ou se as teve, não foi detida por elas, como a maioria dos mortais se deixa deter : submeteu-se a uma mastectomia dupla, à retirada de seus dois seios, como forma de reduzir as probabilidades de uma futura manifestação do câncer.
Decidiu, a bem dos  seis filhos, "ser proativa e reduzir o risco o máximo que eu podia".
Já não deve ser fácil se decidir pela e autorizar a amputação de um órgão condenado, por gangrena, trombose, necrose, metástase, ou o que for. O que dizer, então, da decisão de se alijar de órgãos ainda saudáveis? Órgãos que, apesar de carregarem grandes chances, ainda não manisfestaram a moléstia, nem indícios dela? O que dizer, então, se esses órgãos forem precisamente os seios, o diferencial supremo da beleza feminina?
A bela em questão é a mais bela das belas, é Angelina Jolie. A atriz de 37 anos explicou que sua mãe lutou por uma década contra o câncer, em vão, e que ela, Angelina, procurou dessa forma, através da mastectomia, garantir aos seus filhos que a mesma doença não a tire deles. A cirurgia, diz a atriz, reduziu a chance de câncer para menos de 5%.
Surgida como filha do grande ator Jon Voight, Angelina foi uma das maiores porras loucas de Hollywood, rebelde, doidivanas, drogada, ninfomaníaca bissexual, uma delícia, em suma. Desde a primeira vez que a vi, não me lembro em que filme, e isso é o de menos, percebi logo de cara que não se tratava de  uma mulher, era uma força da natureza que assumia as formas de uma - e que formas! -, um elemental, um desses agentes zombeteiros da natureza que, vez por outra, resolvem passar umas férias em corpos humanos.
De uma hora para outra, transfigurou-se. Chocada pela realidade com a qual se deparou no Cambodja, onde gravou o filme Amor sem Fronteiras, e atordoada por um grau de miséria que jamais supôs existir, miséria humana imposta por humanos, a bela e inconsequente Angelina parece ter sido exorcizada de seu elemental.
De pronto, adotou uma criança cambodjana orfã, e passou a se dedicar, junto à Unicef, órgão da ONU do qual se tornou embaixadora, a causas humanitárias por todo o planeta, sobretudo questões que envolvem crianças expostas a condições sub-humanas. De elemental, promoveu-se a mãe adotiva dos desvalidos.
Agora, do meu ponto de vista, a amputação dos seios saudáveis em prol de sua prole, o sacríficio da carne por sua carne, coloca Angelina Jolie em um patamar infinitamente superior ao da elemental gostosa, tanto que nem sei dizer que patamar seria esse. Só não a digo uma deusa-mãe porque deuses são idiotas inventados por idiotas. 
Oh, pedaço de mim, Oh, metade arrancada de mim, diz a música do Chico, canta a mulher cuja metade foi levada pelo amor que partiu canalhamente, que a abandonou, que arrancou-se, enfim. A metade arrancada pelo amor que se foi, e sem a qual a personagem declara-se à míngua, era o pedaço mais importante da mulher.
Oh, pedaço de mim, Oh, metade amputada de mim. O pedaço de mim de Jolie não foi extirpado por um amor fujão, sonso e ladrão, não foi a metade que se perdeu por amor; antes pelo contrário, foi a metade que ficou por amor, a metade que se quis deixar ficar por amor, que não foge nem abandona os seus. A metade exilada de Jolie, a que se foi, os seus seios, não era sua parte mais importante, sua metade melhor é a que ficou, a mãe. Não há lamento, feito a desiludida de Chico, pela metade que se perdeu, há o acolhimento e o festejo à metade que permaneceu, viva e providente.
De elemental ninfomaníaca, Jolie se elevou a muito mais que uma deusa-mãe. Alçou-se a canção do Chico Buarque, uma canção melhorada do Chico.
E chega. Que elogio maior, desconheço.

Postar um comentário

6 Comentários

  1. Caro Azarão:

    Óbviamente respeitando tua opinião vou te desafiar em uma contra-partida.
    Nunca te passou pela cabeça (por mais remota que seja) a possibilidade que esta estrela de Hollywood seja apenas uma garota-propaganda da poderosa indústria da medicina preventiva?

    Não seria mais coerente (para não dizer inteligente) fazer um acompanhamento periódico e metódico da EVENTUAL evolução de qualquer malígno ?

    Pela lógica adotada ela deveria também retirar o cérebro para não ter um AVC, o coração para não ter um infarto e (como nas piadas ja viralizadas), os dentes para não ter cárie, etc, etc e etc.

    Sei não meu caro. O mundo é um palco. Chego a ter minhas dúvidas se ela fez mesmo as ditas cirurgias.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Se os seus dentes sofressem de, por exemplo, hipoplasia dentária, um defeito genético que impede a formação do esmalte dos dentes, tornando-os fadados a cáries recorrentes e eternas horas na cadeira do dentista, talvez fosse o caso de arrancá-los e substituí-los por próteses.
      O tal gene BRCA1 é praticamente uma sentença de execução da Natureza, a pessoa só não sabe por quanto tempo esperará no corredor da morte.
      As pessoas, se tivessem um pouco mais de conhecimento, ou se aproveitassem a net para fazer algo mais do que defecar nas redes sociais, talvez soubessem disso.
      Agora, se ela fez mesmo as cirurgias ou não... já é uma outra questão.
      obrigado pelo comentário e pela pulga atrás da orelha.

      Excluir
  2. Eu nem devia entrar nessa, mas só sei uma coisa: tirando a coragem de lado e as cirurgia, mulher precisa ter carne. A Angelina é meia pele e osso. Sou mais a Caterine Zeta jones que é um tesão.

    ResponderExcluir
  3. Pois é meu caro.

    Observe que, tanto meu comentário, quanto a tua resposta, foram recheados de "se", "talvez" e verbos na condicional. Então vamos continuar nessa línha.
    SE eu tivesse hipoplasia dentária, eu acompanharia o problema muito de perto ANTES de radicalizar e arrancar todos os dentes.
    O foco do meu questionamento esta no irresponsável terrorismo psicológico adotado pela famigerada medicina preventiva.
    Dois exemplos não hipotéticos. Tem um boletim diário na radio CBN chamado Saúde em foco que, na verdade, deveria se chamar Doença em foco... (parodiando voce mesmo) paaaaaaata que pariu! Dá até medo de ouvir o programa de tão urubulino que o cara é. Segundo exemplo: Um amigo meu, há bem mais de 10 anos foi diagnosticado com uma doença chamada gota. O "especialista" irremediavelmente o condenou a morte se ele não seguisse uma rigidíssima dieta alimentar. De saco cheio de comer somente alface, cenoura no vapor e franguinho grelhado, ele decidiu que não valeria a pena continuar vivendo assim e, deliberadamente assumiu os riscos. Pediu a mulher que lhe preparasse uma bombastica feijoada COM TUDO QUE FAZIA MAL. Ainda não morreu!.
    Está fudido ? Sim esta mas, pelo menos ainda usufrui do prazer de uma picanha bem gorda, uma boa cachaça, e muita cerveja.
    Voltando para as hipóteses: Talvez ele morra de acidente aéreo pois aviões caem.

    Eu adoro e respeito muito uma máxima que diz: "A diferença entre o remédio e o veneno esta na dose".
    Na minha opinião, a poderosa e lobista medicina preventiva exagera na dose.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. ha!ha!ha! gostei da história do teu colega : tá todo fudido, mas feliz da vida...
      Com certeza, Angelina pesou muito bem os prós e os contras e chegou a tal decisão. Sim, talvez todos nós morramos de acidente.

      Excluir
  4. Oiii, Marreta!
    Caraca, se vc fosse mulher diria que esse texto representa a vingança de todas as mulheres feias do mundo!
    Toda mãe de verdade faria isso para entregar seus filhos prontos para o mundo. Não deixaria nem um filho sozinho, ainda mais quando se tem uma ninhada.
    Viva a mulher mãe, a mulher bicho!
    A mulher fêmea só desperta em ocasiões especiais.
    Justamente quando a natureza obriga-a a perpetuar a espécie.
    Alguns dias do mês que o homem geralmente deixa escapar.....rss......
    A Angelina na menopausa...
    O Brad no auge do Lobo Mau.
    Lindo e experiente.
    Não vai prestar.

    ResponderExcluir