Poetas, Infartos, Psiquiatras e Cervejas sem Álcool

Vinicius de Moraes, o Poetinha, de talento inconteste e inigualável, além de legar uma obra poética sublime e belíssimas canções da nossa MPB, cultivou em torno de si (ou deixou que cultivassem em torno dele) a mística do bon vivant, do cara sempre de bem com tudo e com todos, com a vida, enfim, um sujeitos sem arestas ou inimigos, que soube viver a vida com grande generosidade.  Um exemplo de espírito libertário a ser admirado e tomado como modelo.
Mais ou menos, né? Sempre há o outro lado, o lado de lá, o lado dos que orbitam tais notáveis figuras.
Quando mais jovem, talvez até os meus 30 e tantos, quarenta e poucos anos, eu era um apreciador de quem conseguisse ter esse estilo de vida, queria-o, inclusive, para mim. Hoje, no entanto, não vejo tal feitio de vida como algo louvável, libertário, revolucionário ou coisa que o valha; muito menos invejável ou uma receita a se seguir - mas das canções do Poetinha, sigo fidelíssimo devoto até hoje.
De inequívoco e incomensurável talento poético, Vinicius de Moraes, pelo prisma que hoje enxergo (e, claro, posso estar redondamente enganado, o que não seria nenhuma novidade), não me parece ter sido aquele cara generoso de que seus parceiros tanto falam; pelo contrário, parece-me que viveu egoisticamente com um claro objetivo : alimentar os seus dons literários e musicais.
Oficialmente, ali no papel, no preto no branco, Vinicius foi casado nove vezes. Oficialmente. Fora os incontáveis casos avulsos e de ocasião. Cadê aquele cara que dá receitas em suas poesias de como bem nutrir e zelar pelo amor e sua amada? Que tipo de esforço e dedicações reais um cara com um histórico desse pode, de fato, ter empreendido para consertar ou salvar um relacionamento? A mim, parece evidente, que, pouco ou nenhum tempo, ele perdeu em tentar tornar seus relacionamentos mais duradouros. 
Amante das mulheres? Esteve mais para um sanguessuga metafórico delas. Apaixonava-se por elas, louca e perdidamente, usava-as (maravilhosamente, é verdade) como inspiração, como argamassa e tijolos de sua extensa obra, exauria delas toda a essência e, quando não mais lhe forneciam material poético, partia para outra. Amante dedicado? Soneto do Amor Total? Onde?
Assim sendo, várias de suas "receitas" de como lavrar amores eternos e levar a vida sempre na flauta, na maciota, todas belíssimas e musicadas por gênios de mesmo tope, feito Tom Jobim, Baden Powell, Chico Buarque etc são bravatas, são apenas papos e ideias de mesas de bar e de muito whisky, de muito bom whisky. 
Impraticáveis e inaplicáveis para nós, meros mortais. E, acredito, que mesmo - talvez até principalmente - para quem as escreveu e compôs. Para o poeta, compor um soneto, ou uma ode ao amor e à sua amada já é o equivalente a dedicar-se a esse amor e à essa amada na prática. É o seu máximo. O seu limite. A sua paixão é para com a palavra, muito mais do que para com as mulheres.
Disse o maior deles : o poeta é um fingidor. E pobre daquele - principalmente daquela - que de suas palavras se encanta e se enamora. E arrisco-me em dizer mais : em grande parte dos casos, o poeta não é apenas um fingidor; é também um covarde em relação à vida, por isso escreve sobre ela, por isso a vive de fuga em fuga.
Há uma história em torno, inclusive, do próprio Fernando Pessoa. Um empresário ou amigo comum, arrumou um encontro entre ele e a poeta brasileira Cecília Meireles, fã declaradíssima do poeta português. E Pessoa não compareceu. Deu o "bolo" em Cecília Meireles. Esnobismo do português? Ataque de estrelismo? Ficara indeciso sobre com que roupa e com qual heterônimo compareceria ao encontro? Nada disso. Já li algumas explicações para o não comparecimento de Pessoa ao encontro, algumas dizendo até de "razões" astrológicas, mas a de que mais gostei e que me pareceu mais plausível foi a de que Pessoa teve medo de que Cecília Meireles, tão apaixonada pelo poeta, decepcionasse-se profundamente com o homem.
Dessas receitinhas do Poetinha sobre a boa vida e os bons amores, uma das que mais gosto é a Testamento, tanto que uma das seções mais antigas do blog, a Que Fossa, Hein, Meu Chapa, Que Fossa, teve seu título surrupiado desta letra. A canção é o clássico de Toquinho e Vinicius que têm, a exemplos, os seguintes versos : "você que só ganha pra juntar, o que que há, diz pra mim o que que há, você vai ver um dia em que fria você vai entrar" (preocupação que devia ser muito pequena, de fato, para quem nasceu já em berço de ouro), "você que só faz usufruir e tem mulher para usar e exibir, você vai ver um dia em que toca você foi bulir" (da mesma forma que ele usufria e exibia suas mulheres, em suas obras poéticas e musicais), "bolsa, títulos, capital de giro, public relations, e tome gravata, o pensamento sem espírito, e tome gravata, e lá, um belo dia, o infarte, ou pior ainda, o psiquiatra".
Assim como, no passado, eu admirava o life style do Poetinha, até bem menos tempo, sempre concordara com esses seus últimos versos, "e, lá um belo dia, o infarte, ou pior ainda o psiquiatra". Isso porque eu ainda não conhecera a cerveja sem álcool. E, tenho certeza, nem Vinícius, ou ele teria escrito, "e lá, um belo dia, o infarte, ou, pior ainda, a Itaipava sem álcool". Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...
Pããããããta que o pariu!!!!!!


Da esquerda para a direita, Manuel Bandeira, Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
Meninos, jamais tornarão a ver um país assim.

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6 Comentários

  1. Fala, Marreta.

    É o faça o que digo, não o que faço. No meio do post, você citou também Baden Powell, gênio das cordas que não valia um centavo como ser humano: torturava todos, inclusive a própria família à sua volta. Se fosse um pé rapado, seria daquele tipo de sobreviveria às custas da pensão da própria mãe.

    Tento sempre separar a obra do autor. Chico Buarque é o maior sambista vivo, creio, ao lado de Paulinho da Viola. Mas é alguém que certamente eu não faria questão de chegar perto se o visse num ambiente público, como num aeroporto, por exemplo. Come caviar com recursos públicos, em Paris, traçando novinhas, enquanto bosteja sobre as delícias de sistemas onde o Estado a tudo governa com mãos de aço, esmagando seu povo com fome, doenças e medo.

    Vinícius foi um esnobe que viveu a mil por hora, agraciado com bons cargos públicos. Para caras como ele, é fácil criticar o cidadão médio que faz contas na ponta do lápis para pagar os boletos do mês. E por aí vai…

    Não sei se já te falei. Mas Bandeira é meu autor preferido de todos os tempos. Sempre senti franqueza em suas obras: se via como um bem-nascido que curtia a vida como podia. Dizia gostar de bestar por aí, beijando putas bonitas, tendo a vida regada com grana pública graças aos bons cargos que ocupava.

    Sobre Pessoa, creio realmente na desculpa astrológica, pois ele era fascinado por astrologia e sistemas ocultos diversos!

    Abraços!

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    1. Dos modernistas, Bandeira também é o meu predileto. Concordo totalmente com o que disse do Chico. Sobre o Baden Powell, eu não sabia.
      Abraço.

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  2. Belíssimo texto, irrepreensível raciocínio. Estou eu aqui, às 3h36 da madruga, tomando leite com Nescau (????) e comendo um pão murcho com requeijão cremoso, mas tudo bem. Valeu a pena por ter lido suas reflexões quase no momento em que foram publicadas.
    Concordando com tudo que disse, queria ampliar um pouco o tema. Começando pelo Vinicius, sim, ele foi um sátiro egoísta, mas nunca ocultou sua visão da transitoriedade de um relacionamento amoroso, Olha estes versos:
    “E assim, quando mais tarde me procure (...) quem sabe a solidão, fim de quem ama, eu possa me dizer do amor (que tive): que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
    Paradoxalmente, ele talvez tentasse se enganar quando escreveu:
    “Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver à espera de viver ao lado teu por toda a minha vida”.
    Pouco importa se ele sabia conscientemente da sua impossibilidade de amar para sempre a mesma mulher, o que sei é que ele escrevia bem pra caralho!
    Quanto ao comportamento do Fernando Pessoa(s) e de muitos que passam a imagem de puros, de almas generosas, de boa gente, hoje eu tenho uma visão menos romântica sobre os “bons homens”, e explico por quê:
    Conheci um senhor cuja nobreza de caráter e coração generoso são incensados até hoje por seus filhos e por quem o conheceu. Ela era realmente gente boa, mas vá ser egoísta assim lá na putaquiupariu! Para começo de conversa era um ditador impaciente dentro de casa, pois exigia que a filharada (não parava de fazer) o esperasse ao final do dia de banho tomado (creio que só não pedia para que ficassem em posição de sentido). Além disso, depois de jantar, saía novamente para ir à igreja, onde desempenhava alguma atividade piedosa. Ou então, ia para a casa de um dos irmãos onde ficava conversando fiado até tarde da noite. Pai amoroso? Marido dedicado? Bom coração? Grande egoísta isso sim, preocupado apenas com o que sentia e com sua forma de ver a vida. E é elogiado até hoje.
    Hoje, não só acho como tenho certeza, de que somos ou tentamos exibir apenas a parcela mais agradável e edulcorada de nossa personalidade. Por isso, para finalizar este gigantesco comentário, permito-me fazer uma auto-citação (eu sou humano, pô!).
    Você me enxerga, mas não me vê; eu me vejo e não me enxergo. Você acredita que eu sou um, eu penso que sou dois, mas suspeito que seja três.
    Insaníssima trindade: o que você crê que eu seja, o que sei que sou e o que não confesso nem a mim mesmo.

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    1. Talvez, haja um quarto elemento nisso, o pior deles : o que pensamos que somos.

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    2. Na verdade, isso já está implícito na frase "eu me vejo e não me enxergo".

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