22ª Feira do Livro de Ribeirão Preto

Até 2009, 2010, mais ou menos, A Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto, cuja primeira edição deu-se em 2000, foi o que o nome sugere e ao que se pretende, um espaço para os amantes dos livros e da boa leitura, um oásis para os aficionados pelas belas letras, uma miragem anual no deserto inculto que é Ribeirão Preto. Embora sediada na Praça XV, um espaço público, portanto, e com entrada franca, só percorriam seus corredores pessoas interessadas em livros, o populacho passava ao lado e mal olhava. Bons tempos.
Tenho caras e incontáveis recordações do citado período. Incontáveis no sentido de inúmeras e no de não poderem ser contadas. Incontáveis e inenarráveis lembranças. 
Além de uma grande variedade de segmentos de expositores, de pequenas editoras e a prática de bons preços, a Feira contava também com um belo rol de palestrantes e de músicos para os quais a palavra é tão importante quanto as cifras de suas canções. O escritor Ignácio Loyola Brandão era figurinha carimbada nessa época. Também conheci o quadrinista e escritor Lourenço Mutarelli, quase que levo a HQ Transubstanciação que tenho para ele autografar, mas achei coisa de tiete, viadagem, hoje me arrependo um pouco.
Para os espetáculos musicais, um palco era montado à noite na Esplanada do Teatro Dom Pedro II. Assisti a Tom Zé, Toquinho, Renato Teixeira, Arnaldo Antunes, Oswaldo Montenegro, entre outros.
E tudo corria muito bem até então.
Foi quando, acho que em 2011, 2012, não me lembro de quem era a desgraça do prefeito(a) na época, resolveram "popularizar" a Feira. Fodeu. Cagou no pau e escorreu pro saco.
Não sei em outros países do mundo, porém, no Brasil, popularizou, já era. A pasta de Cultura da Prefeitura resolveu levar para o Feira do Livro o ser vivo que menos gosta de ler que há : o aluno. Criaram uma espécie de cheque para compras dentro da Feira e eles foram distribuídos a rodo nas escolas públicas municipais e estaduais da cidade. Com a obrigação, lógico, das escolas levarem seus alunos ao evento. Como o semiletrado não ia à Feira do Livro (no que ele estava certo, afinal, não há o que um analfabeto, uma ralé moral, ir fazer numa feira literária), a Feira do Livro foi ao semiletrado. Para incentivá-lo e incutir-lhe o hábito da leitura. Até parece que podia funcionar...
A Feira, então, foi tomada pela plebe ignara, pelos manos e pelas minas da bosta dessa cidade. Não viram, é lógico, a Feira como um espaço de novas experiências, de algum tipo de ilustração ou aprendizado. Pelo contrário, a Feira virou um triste palco para a exibição de toda a falta de educação e ignorância do brasileiro e, inclusive, de atos de assédio, violência e banditismo. Eles chegavam em hordas, saíam já em algazarra dos ônibus que até lá os tinham conduzido.
Passou a acontecer "arrastões" em lojas e mercados do entorno. Eles entravam em bandos e se punham a comer e beber dentro dos estabelecimentos, sem pagarem por nada. Um rastro de embalagens de salgadinhos, chocolates, refrigerantes etc e de depredação era deixado para trás, quando em bando também saíam. Os manos faziam corredores "humanos" pelas passagens da Feira e as meninas que por eles passavam eram assediadas, tinham que ouvir as gracinhas dos delinquentes, os pedidos de beijos deles, aturar os afagos nos cabelos. Os espetáculos musicais noturnos acabaram por ser cancelados, pois vários casos de furto aconteciam entre o público durante as apresentações, a polícia passou a ser presença obrigatória.
O cheque da Feira do Livro virou piada. Pouquíssimos compravam livros com eles. Bem à brasileira, o cheque-livro foi transformado em uma moeda paralela de câmbio. Eram gastos em todo o tipo de porcariada vendida por ambulantes, e estes, de alguma forma, conseguiam trocá-los por grana com alguns dos expositores.
Leitores das antigas, frequentadores raiz da Feira, inclusive esse que vos fala, abandonaram, deixaram de prestigiar o evento. De oásis, passou-nos a ser um local inóspito, inabitável, tóxico. 
Com a mudança do público, a mudança dos expositores. Vários expositores também abandonaram a Feira, que diminuiu drasticamente de tamanho já no ano seguinte. Noventa por cento da "nova" Feira passou a ser composta de stands de livros infantis, esotéricos e de autoajuda. Pudera. Sendo os  visitantes da Feira, agora, "estudantes" e professores, sobretudo professoras, esoterismo e autoajuda vendiam de montão.
Fiquei alguns anos sem pisar na Feira do Livro. Mais ainda sem nada comprar por lá. Como era caminho meu de volta do trabalho até 2019, às vezes, arriscava-me a dar uma olhada, mas não havia mais nada que valesse o preço de capa.
Então, nessa terça-feira, uma professor amigo me falou que a Feira estava bem mais tranquila de novo e que havia algumas barracas com bons livros a bons preços. Falou-me de uma (e não era de esoterismo e autoajuda, garantira-me) que estava com ótimos títulos, todos a R$ 15,00. Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, entre eles. 
Adoro o Asimov e seus contos de robôs, construídos em torno de suas três inflexíveis, pétreas, porém, falíveis Leis da Robótica. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um humano venha a ser ferido. Um robô deve obedecer às ordens dadas por um ser humano, exceto no caso em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei. E em cima desse tripé legal, em cima de robôs cujo cérebro positrônico dá algum tipo de pane, de tilt, e eles, de alguma forma, transgridem ou mal interpretam alguma das Leis, Asimov escreve contos inteligentíssimos, de rara beleza lógica.
Fui, então, na quinta-feira à Feira do Livro. O ambiente, de fato, estava muito mais tranquilo do que me lembrava, nada de manos e minas. O número de expositores continua pequeno, ínfimo se comparado aos primórdios da Feira. Achei a tal barraca e fiz o que acredito ter sido uma boa compra. Adquiri três livros a 15 contos cada um. Os Robôs da Alvorada, do Asimov (um livro que, com suas mais de 500 páginas, deve custar mais que o triplo ou o quádruplo disso numa livraria), e me arrisquei em dois autores desconhecidos por mim, cujas resenhas das obras nas orelhas dos livros muito me agradaram, William Gibson (Count Zero) e a polonesa Dorota Mastowska (Branco Neve, Vermelho Rússia). 
Um único arrependimento. Soube, com dois dias de atraso, que na terça-feira (16/08), houve uma palestra com o moçambicano Mia Couto, excelente, um dos autores de que mais gosto. Tivesse sabido antes, teria desmarcado a tal da terapia com a psicóloga que faço às terças (e que não está a me valer mesmo uma paçoca) e ido ver Mia Couto. Teria-me sido de muito mais valia.

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7 Comentários

  1. Não frequento mais esses eventos. Aliás, muita coisa usada com preços elevados. Acho q vc poderia comprar esses títulos até mais em conta em vitrines da Amazon e com frete grátis. Mas valeu pela diversão, claro.
    Deveria ter tietado e autografado Transubstanciação. Acho q vc tem a primeira edição, hj rara e caríssima.
    Conheço a trilogia do sprawl de Gibson, mas não sou fã.
    Forçar jovens a ler... Isso não dá certo.
    Abraços

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    1. Gostei de revisitar um espaço que já me foi tão caro, não é mais o mesmo, é claro, mas eu também não sou. Comecei a ler pelo Asimov, já tô quase na metade do livro, depois vou pro Gibson.
      O Mutarelli é uma figura, um cara todo cheio de TOCs, tímido pra caralho.
      Na conversa com ele, havia um cara mediando, um ex-dono do único verdadeiro cineclube que Ribeirão já teve, o Cauim, e a primeira coisa que o Mutarelli fez foi agradecer a esse cara pelas doses de whisky que ele bancou pro Mutarelli, cujo cartão havia sido confiscado pela esposa justamente para controlar os gastos dele com a bebida. Foi um agradecimento sincero, a gente via que o cara tava profundamente grato. Na época, ele já não fazia mais HQs, tinham migrado totalmente para os livros, que para ele eram um processo mais rápido e mais lucrativo, ou que dava menos prejuízo, pelo menos. Falou que tava devendo uma fábula para a Devir.
      Vou ver se acho a HQ, tiro uma foto dela e posto aqui, mas creio que seja a primeira edição sim.
      Abraço.

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  2. Pô, palestra com o Mia Couto é "biscoito fino", como disse o Oswald de Andrade. Longa e próspera vida à nova/velha feira do livro.

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    1. E eu na tal da terapia, que não tá me valendo uma mariola!

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    2. Alegre-se, você ainda tem tempo para ler! Nem no banheiro mais eu tenho tempo para ler. O Blogson está sobrevivendo porque eu sou uma besta, que troca o tempo do almoço ou lanche para escrever alguma idiotice (que ninguém lê).

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  3. Gosto de zanzar pelos sebos de Ribeirão, estão quase sempre vazios. Já passei alguns sábados com a patroa ali no centrão e 9 de julho em busca de raridades. Tem um sebo bom de discos e CDs ali perto do Sesc. Abraço!

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    1. Já fui muito de andar pelos sebos da cidade também. Mas hoje mal consigo tempo para ler. Esses três que comprei vão render bastante.
      Valeu pela dica.
      Abraço.

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