Nós, Cobaias de Deus ou Robôs de Pavlov?

Eu sou o cara "certinho", careta e responsável que morre de vontade de ser o mais errado, o mais "zen", o mais largado do mundo.
Queria demais : chegar atrasado de vez em quando ao trabalho e a encontros marcados (chegar atrasado não de propósito, para provar que sou "descolado", por falta de organização, mesmo), deixar as contas vencerem, esquecer as luzes acesas e a TV ligada quando não estou na sala, não limpar o mijo que, eventualmente, respinga na borda da privada ou no chão, não catar os ciscos que vejo no chão, não olhar a data de validade dos produtos no mercado, ainda no mercado, entrar com o carrinho lotado de compras no caixa rápido destinado a 10 ou 20 volumes (e não ficar puto com quem faz isso, querendo ter superporderes nessa hora para trucidar o filho da puta), não vigiar nem cobrar o filho para que ele cumpra com suas tarefas básicas, não aguar e adubar as plantas, ir dormir sem lavar a louça suja na pia e também ser tomar banho, escovar os dentes, verificar portas e janelas e a válvula do gás de cozinha, caminhar bêbado e a esmo pela madrugada.
Tem dias em que me deito para dormir e digo : amanhã, eu vou acordar tarde, não vou varrer a casa, não irei à padaria nem ao mercado nem à quitanda, café?, quem o quiser que o coe, não vou me preocupar com a hora das refeições, não vou querer nem saber se tem comida pronta para o almoço do filho e da esposa, não vou trocar a água nem repor a ração nem limpar a caixa de areia das gatas, não vou pôr o lixo fora. Porém, acabo fazendo tudo isso e muito mais.
Queria muito, ainda que apenas às vezes, mandar tudo às favas. Ter um dia de ócio. Mas não consigo. Segundo uma grande amiga, de quem - mea culpa, mea maxima culpa - estou ausente há tempos, minha "socialização primária" foi muito bem feita. Seja lá o que isso for.
Sou o cara que se diverte demais com as diabruras que o capeta sussura no meu ouvido esquerdo, mas que, por alguma razão, acaba por seguir os conselhos do anjo, no meu ouvido direito. Sou o Mr. Hyde que não foge da prisão das placas de Petri e dos tubos de ensaio do laboratório do Dr. Jekyll, mesmo que não haja carcereiros, mesmo que as grades estejam destrancadas.
Qual não foi a minha surpresa em saber que o ex-estranho (ele que acha) e sorumbático GRF também padece dessa dicotomia entre o que a gente quer da vida versus o que a vida quer e exige da gente?
Cobaias de Deus, ou Robôs de Pavlov?
Pessoas como o GRF e eu acabamos muitas vezes por sobrepor as necessidades dos que nos são próximos aos nossos pequenos prazeres. Acabamos nos rendendo ao poetinha Vinicius : a vida tem sempre razão.
Rendemo-nos, mas não sem angústia, a contragosto. Angústia e contragosto expressos de forma irretocável no poema de GRF que replico abaixo:
 
Admirável Fase Poética, por GRF
 
Entrei numa nova fase poética
uma fase que a escrita me abandona
que a rima fica seca, desértica,

e que minha prosa vira uma zona
numa orgia de ervas e cafeína.
Entrei numa nova fase, menina,
sei nem o que quero pro agora
mas sei que quero sem demora
qualquer coisa que há.

Entrei numa nova fase poética
a frase que não segue a métrica
a régua que foi pro lixo
escrever o que bem desejo
eis agora o meu nicho.

Entrei numa nova fase poética
abdiquei da bela poesia
agora vou escrever tudo torto
desfigurado de sentido figurado
parem, parem, parem!

ESTOU MENTINDO!
 
Eu tento a desordem
eu tento!
Mas os hábitos devoram a selvageria e a possibilidade
de me entreter em novos horizontes.
Eu quero a louça lavada. Lavei.
Eu quero a casa limpa. Limpei.
Eu quero a cama arrumada. Arrumei.
Eu quero ser tudo. Serei.
Eu quero ser nada. Nadei
e sigo aqui boiando pelas ondas
que atravesso sem (quase) afogar.
Eu não consigo me permitir errar, acordar com as remelas nos olhos
e assim ficar. O bafo o dia todo, andando de samba-canção, o ralo entupido,
eu não consigo. Sem alarme? Sempre há dois, três alarmes.
 
Sou o rato.
Sou o experimentador.
Sou a caixa.
Sou a barra.
Sou o som aversivo.
Sou o reforço.
Sou o comportamento.
Valha-me São Pavlov!
Valha-me beato Skinner!

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2 Comentários

  1. Uma honra. Um azar também.
    Demorei para ver a publicação, mas deixou o poema melhor descrito.

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    1. Rapaz, eu não tive intenção nenhuma de "explicar" o poema, não. Nem sei se não falei alguma merda. Só quis passar no texto o que ele me provocou, é um simples ponto de vista.

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