Meia-Noite na Minha Paris

Há certos livros, compositores, filmes, lugares, épocas, mulheres... que não poderíamos morrer sem visitá-los. A questão é que muitas vezes, no mais das vezes, não os sabemos quais. Até passamos por eles, às vezes; damos encontrões com eles por aí; até os cruzamos pela vida, mas a nossa pressa em não faltarmos nem nos atrasarmos para o nosso compromisso diário com a realidade nos impede de dispensarmo-lhes maiores atenções e cuidados.
Quantos livros não li (nem lerei) ou quantos autores não descobri porque tinha de preparar uma aula que, bem sabia, ninguém prestaria mesmo atenção? Quantos Bukowskis ou Fonsecas deixei de conhecer porque tinha que corrigir calhamaços de provas entregues em branco?
Quantas músicas e músicos abdiquei de me fazerem acompanhar em uma cerveja porque precisava repor o arroz e o feijão, o macarrão, as frutas e legumes, o café e o açúcar, o sal e o óleo, o papel-alumínio e o guardanapo na despensa? Quantos Jobins e Russos deixei de conhecer enquanto esperava na fila do açougue?
Por quantos lugares passei a trem-bala, como quem vê artigos em vitrines de lojas, ao invés de a pé conhecê-los sob a chuva, a madrugada, o café e o vinho só porque, ao fim das férias ou do feriado, eu tinha que voltar ao trabalho e juntar uma grana para poder, de novo, passar por novos lugares a trem-bala ao invés de conhecê-los a pé etc. 
Com quantas mulheres deixei de me encantar e de me aborrecer, e de encantá-las e de aborrecê-las, porque, enfim, somos monogâmicos e tal, certo?
Quantas meias-noites eu já perdi por ter que suportar os infindáveis meios-dias?
Mas volta e meia, um desses livros, compositores, filmes, lugares, épocas, mulheres... que não poderíamos morrer sem visitá-los, mas, no mais das vezes, não os sabemos quais, encontram uma brecha em nós, um hiato em nosso tempo, uma baixa em nossa guarda, uma nossa distração das coisas do dia a dia e se nos impõem que lhe demos a devida atenção.
Volta e meia, um desses livros, compositores, filmes, lugares, épocas, mulheres... que não poderíamos morrer sem visitá-los, mas, no mais das vezes, não os sabemos quais, decidem que também eles não podem morrer sem que nós os tenhamos visitado. E, já exauridos de paciência por tanto e em vão nos esperarem, entram sem tocar a campainha, sentam-se às nossas mesas sem serem convidados, tomam de nossa bebida sem que lhes seja oferecida.
E ainda bem que, volta e meia, um desses livros, compositores, filmes, lugares, épocas, mulheres... que não poderíamos morrer sem visitá-los, mas, no mais das vezes, não os sabemos quais, faz isso.
Hoje, por volta das três da manhã, uma forte chuva me tirou do meu sono sempre leve de nuvem. O dia me chamando mais cedo? Pensei que sim. E levantei-me com mal-humorado pé esquerdo. Corri à sacada, ver se a chuva não estava a encharcar a ração e a areia das gatas, ou a tentar afogar algum de meus cactos e suculentas, derrubá-los de suas prateleiras.
Tudo acudido e controlado, sabia que não mais pegaria no sono; e ainda faltavam três ou quatro horas para o meu dia efetivamente começar, acordar esposa e filho, fazer o café de um, preparar o leite e o lanche do outro etc. Preferi considerar as três ou quatro horas como um bônus de madrugada, ao invés de sono perdido. Considerá-las como um episódio de Além da Imaginação, ao invés de cenas do próximo capítulo de nossa diária novela mexicana. 
Sem mais o quê, fiz forte café em minha cafeteira italiana, salpiquei-lhe canela, deitei-lhe generosa dose de rum e me dispus a assistir a um filme. O primeiro que surgisse. Uma roleta-russa. Entrei numa dessas plataformas de streaming, selecionei a opção "ficção" e ele surgiu. A decisão foi dele; em nenhum momento, minha. Ele, o filme, decidiu que eu não poderia morrer sem vê-lo; decidiu que ele não poderia morrer sem que eu o tivesse assistido.
Não tinha sido o dia a me chamar mais cedo se valendo do subterfúgio de uma forte chuva; fora o filme.
Meia-noite em Paris.
O Além da Imaginação de Woody Allen.
O melhor Além da Imaginação.
O melhor Woody Allen.
Morro, agora, com um arrependimento a menos; dentre tantos.
Morro, agora, dando um motivo a menos que justifique a crueldade de algum deus querer me fazer reencarnar.

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4 Comentários

  1. "no mais das vezes, não os sabemos quais"

    Tb já me vi pensando bastante sobre isso.

    Woody Allen não me cativa. Por exemplo: não cheguei a ver Meia-noite em Paris até o final. Não desce, apenas isso.

    Abraços!

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  2. Livros, melodias e filmes podemos conhecê-los e visitar em qualquer época – mesmo que não nos identifiquemos com eles em algum momento da vida. Isso já aconteceu comigo. Lugares, mulheres, autores e compositores são melhor e mais livremente explorados, conhecidos e/ou apreciados na Juventude, a melhor fase da vida, uma fase cheia de vigor, entusiamo e despreocupação, injustamente efêmera (mesmo que alguns queiram perpetuá-la artificialmente à custa de plásticas, implantes, tintura de cabelo e coisas do gênero). Triste é descobrir isso quando só nos resta lamentar e arrepender. Por tudo que fizemos e não deveríamos ter feito, por tudo que não fizemos e que deveríamos ter feito.

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    1. É a podridão, meu velho.
      O filme trata um pouco disso, de acharmos que o passado foi uma época melhor, um filme de nostalgia; creio que bem adequado a nós.
      Já o assistiu? Compensa bastante. Também é filme curto, uma hora e meia.

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    2. Estou em dúvida, pois a memória "rã" foi pro saco. Segundo li, para conseguir patrocínio para seus filmes, o Woody Allen abandonou sua amada Nova Iorque e foi filmar em outras paragens. Ele, o Almodovar e o Al Pacino (como ator) sempre são apostas de bons filmes. Para tentar confirmar a questão do patrocínio, acabei descobrindo na internet uma ótima entrevista com ele que (claro!) será convertida em novo post.

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