Todo Castigo Pra Corno é Pouco (33)

Mário Lago foi ator, produtor, diretor, compositor, radialista, escritor, poeta, autor de teatro, cinema, rádio e TV, advogado e boêmio. Um intelectual na acepção mais vernacular da palavra. Destes que estão a nos morrer os últimos e o Brasil não tem mais em seu estoque para repor. Nem tornará a ter. Só para citar outros nomes que lhe foram contemporâneos, coloco-o, por minha conta e sem nenhum risco, parelho a um Millôr Fernandes, a um Ariano Suassuna, a um João Ubaldo Ribeiro, a um Rubem Fonseca, a um Paulo Vanzolini.
Não obstante a sua genialidade, Mário Lago, sim, meus caros, também foi corno. Já o disse aqui e o repetirei enquanto for preciso : o bom e velho chifre é a mais democrática de nossas instituições. O chifre é pop, o chifre não poupa ninguém. Indistingue cor, credo, classe social, idade, nacionalidade, gênero musical, orientação sexual ou, no caso, Q.I.
Mário Lago mereceu o chifre. Teve em suas mãos a bela, recatada e do lar Amélia, a mulher de verdade, a que não tinha nehuma vaidade, a que passava fome ao seu lado e achava bonito não ter o que comer. Teve mulher de moral ilibada por companheira. E o que fez o Mário? Que Mário? Aquele que abandonou a Amélia atrás do armário. Trocou-a por uma vã e fútil; por uma vagabunda duma biscate, enfim.
Em Ai, Que Saudades da Amélia, quando nos cantou as virtudes de Amélia e o arrependimento de não mais tê-la ao seu lado, Mário Lago já se encontrava nas garras da leviana. Talvez poucos tenham se apercebido disso ao ouvir a canção, ou até notaram, mas logo se esqueceram, pois a tônica da música é a exaltação das virtudes da Amélia, mas a ficha da barca furada em que entrara já caíra para Mário Lago. Queixa-se ele da biscate : "Nunca vi fazer tanta exigência nem fazer o que você me faz, você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz. Você só pensa em luxo e riqueza, tudo o que você vê, você quer..."
E Mário para por aí. Porém, a seguir o natural da vida, qual o próximo passo da biscate, assim que Mário não mais conseguir lhe prover tanto luxo e riqueza? Chifre! Galha! A velha e justiceira guampa! E foi o que aconteceu. Todo castigo pra corno é pouco!
Em que tipo de corno Mário Lago se revelou? Do brabo? Do manso? Do ateu (aquele que não acredita no chifre)? Nada disso. Mário Lago se revelou um corno Brahma. Aquele que sabe que a mulher vive em um eterno rodízio de pirocas, mas crê que é somente a ele que ela ama, que ele é o número um.
Como nos conta, em parceria com o não menos genial Benedito Lacerda, na canção Número Um. Que eu também chamaria de A Vingança da Amélia.
A história é a mesma de sempre, diria-a mesmo universal. O corno é um filantropo, um benemérito, acolhe a biscate, tenta tirá-la da vida perdida e ela lhe retribui com o chifre. Não culpemos a biscate. É da natureza dela. Feito a fábula do sapo que transporta o escorpião às suas costas. Relata-nos, Mário Lago :  "Chegaste na minha vidacansada, desiludida, triste, mendiga de amor. E eu, pobre, com sacrifício, fiz um céu do teu suplício, pus risos na tua dor, mostrei-te um novo caminho". Mas biscate só conhece um destino, o do carrossel de picas : "Tudo porém foi inútil, eras no fundo uma fútil, e foste de mão em mão". Porém, a certeza do corno em ser o único verdadeiramente amado, fá-lo perdoar a biscate : "Não guardo frios rancores, pois entre os teus mil amores, eu sou o número um".
É sim, corno, ô se é! É o corno medalha de ouro!
Número Um é uma belíssima seresta. Gravada por inúmeros cornos deste nosso Brasil dantes mais varonil, Altemar Dutra, Carlos José, Nélson Gonçalves, Orlando Silva. A versão cujo link deixarei ao fim da postagem é com Caetano Veloso, faixa do LP Maria Bethânia e Caetano Veloso Ao Vivo, de 1978.
Número Um
(Mário Lago/Benedito Lacerda)
Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado
Com outro que te encontrou.

E eu relembrei comovido
O velho amor esquecido
Que o meu destino arruinou.

Chegaste na minha vida
Cansada, desiludida
Triste, mendiga de amor.

E eu, pobre, com sacrifício
Fiz um céu do teu suplício
Pus risos na tua dor.

Mostrei-te um novo caminho
Onde com muito carinho
Levei-te numa ilusão.

Tudo porém foi inútil
Eras no fundo uma fútil
E foste de mão em mão.

Satisfaz tua vaidade
Muda de dono à vontade
Isso em mulher é comum.

Não guardo frios rancores
Pois entre os teus mil amores
Eu sou o número um.
Para ouvir a canção, é só clicar aqui, no meu poderoso e número um MARRETÃO.

Postar um comentário

7 Comentários

  1. Mário Lago, genial, antecipou até mesmo a cultura cuquista hj tão em voga.

    ResponderExcluir
  2. A expressão, muito em voga entre os mais moços, é um neologismo, melhor dizendo, um estrangeirismo, do inglês cuckoo, "cuco". O cuco (Cuculus canorus) é pássaro que tem por costume pôr seus ovos no ninho de outras aves, fazendo-as criar seus filhotes (do cuco) como se fossem próprios. Metaforicamente, portanto, em inglês, diz-se daquele cuja mulher não lhe é muito fiel ser "cuckolded", "traído", daí o "cuquismo" do Neófito.
    Sendo esse nosso destino inescapável, meu caro Marretão, prefiro ser comparado a um pássaro a ser nivelado a um bovino. Pelo menos é mais... poético.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Antes de ter visto o seu comentário, tinha pesquisado e achado : cuckold nada mais é do que sentir prazer ao ser corno. É, isso mesmo. O termo é uma adaptação do inglês cuckoo (o pássaro cuco) que, na natureza, aceita receber em seu ninho ovos postos pela fêmea de outro macho.
      É só um nome mais pomposo para o velho cornomansismo! Sim, meu caro, devo concordar com você, dar o meu chifre a torcer, muito mais poética a comparação com um pássaro.

      Excluir
  3. Você foi muito pessimista ao dizer que “o Brasil não tem mais em seu estoque para repor” (os intelectuais). Talvez esteja certo, mas no quesito “cornismo” estamos bem na fita. Se não temos mais a poesia de Mário Lago temos as letras da Marília Mendonça (peço licença para ir ali fora vomitar um pouco).

    ResponderExcluir
  4. Rapaz, no quesito chifre, o estoque está abarrotado! Tá tendo é promoção, é liquidação de chifre! Mas quanto a uma reserva de intelectuais, temo estar certo.

    ResponderExcluir