Pequeno Conto Noturno (82)

03:42 h. Vê Rubens, no relógio com olheiras e propaganda de cigarros por detrás dos ponteiros da loja de conveniência. O do segundos treme parado, sem sair do lugar. Rubens pega um latão, paga à moça do caixa e vai se sentar ao fundo da loja, à direita da porta de entrada, o ponto mais distante na loja da caixa regsitradora e dos balcões do café e do pão. Desde a uma hora, uma hora e pouco deste sábado, Rubens erra pelas ruas.
Como volta e meia acontece, a Viúva Branca da insônia chegara-lhe em visita na quarta-feira. Visita que chega sempre sem convite e que nenhuma desfeita, má-criação ou vassoura atrás da porta são capazes de espantar. Lutara contra ela na quarta; negociara com ela na quinta; na sexta, tentara enganá-la; capitulara, enfim, ao romper do sábado : saiu às ruas e deixou a Viúva Branca lá, a ver paredes, com a pueril esperança de não mais encontrá-la em seu retorno.
Acaba o primeiro latão, pega outro e volta à mesa. Andara por parte do centro e por seu bairro todo, de loja de conveniência em loja de conveniência. Uma concessão que fora obrigado a fazer, as lojas iluminadas de conveniência, desde que os velhos botecos do velho centro passaram a fechar antes da meia-noite Não parara em nenhuma antes desta. Entrava, pegava uma cerveja e se punha a caminho. Nesta, a uns 12 quilômetros de seu apartamento, resolvera se sentar, recuperar o fôlego e o ânimo para o caminho de volta. Não exatamente no limite da cidade, a loja fica em um posto de combustíveis estrategicamente localizado próximo a trevos, entroncamentos e dispositivos de saída para vários outros munícipios da região; opções para outros destinos tão miseráveis quanto.
Rubens acaba o outro latão e um madrugador grupo de cinco ciclistas entra na loja. Mais espalhafatosos que o canto de um jovem galo. Roupinhas apertadas, capacetes aerodinâmicos, cotoveleiras e joelheiras anti-impacto, sapatilhas aderentes. Quando foi que andar de bicicleta tinha virado uma viadagem tão grande? Perguntou-se Rubens. Quando foi que pedalar uma magrela tinha virado uma atividade gourmet? E quando foi que bicicleta virara bike? Eles entram. Três mulheres e duas bichonas. Pedem espressos. Tiram fotos das xícaras fumegantes, assim que lhes são servidas pelo balconista de nariz e touca tristonhos.  Postam em alguma rede social. Mesmo de longe, Rubens pode ouvi-los. Fascistas dsse tipo de fascista fazem questão de que todos os ouçam. Não lhes basta o estranho prazer que parecem ter em pedalar. Nem que apenas os seus amigos e conhecidos sejam acordados àquela hora com as fotos deles tomando um espresso. Nada disso. Julgam-se moralmente superiores. Todos têm de conhecer as suas receitas para uma vida feliz e saudável Que a cafeína, diz uma das bichonas, é um eficiente revigorante muscular, que é uma bebida termogênica. Uma das mulheres, em tom de voz ainda mais alto que o da bichona, diz que é capaz de senti-la a queimar as gorduras de seus glúteos e panturrilhas. Se algum deles, decide Rubens, perguntar se tem um suquinho detox ou de clorofila, vai acabar vomitando o último latão e pegar uma das bichonas pelo pescoço e pedir o reembolso pela cerveja derramada. Nenhum deles pergunta. Os cinco "bikers" saem. Loucos de cafeína. Rubens faz votos que de uma boa duma carreta de cana-de-açúcar lhes trombe pelos cus.
Uma van de uma prefeitura estaciona e duas moças, duas enfermeiras sonolentas, porém bem passadas e engomadas, descem, pedem quatro cafés, uns tantos pães de queijo e saem de volta para a van. Rubens nutre uma certa ternura triste pela profissão de enfermeira. Que inferno ter como único talento e vocação cuidar e dedicar-se a outro ser humano.
Porteiros e faxineiras de condomínios próximos também começam a transitar pela loja. Não pedem café. Compram apenas pão para acompanhar o café que trazem de casa, em suas pequenas garrafas térmicas. Viajantes e representantes comerciais abastecem seus carros, entram, falam, tomam café, compram cigarros, chicletes e somem pela estrada. 
Até que chega Vívian.
Um carro prata estaciona perpendicular à vidraça da loja de conveniência. Que é só o que Rubens sabe hoje em dia sobre carros. Quando moleque, conhecia todos eles, ou quase todos. Eram muito distintos, um modelo do outro, uma marca da outra. Fusca, Brasília, Variant, Corcel, Belina, Kombi, Puma, SP2, Maverick, Opala, Caravan, Kharman-ghia, Veraneio. Rubens sabia até as velocidades máximas previstas nos velocímetros de cada um. Depois do Gol, tudo virou uma mesmice só, um só pastiche. Hoje, Rubens os classifica e diferencia apenas como preto, prata e branco.
Uma logomarca na porta do carro prata. Duas ou três letras "artisticamente" entrelaçadas, querendo criar um efeito visual que Rubens não consegue decifrar, ao menos que seja o de vertigem. Um idiota pretensioso e afetado, quem bolou o tal logotipo; mais estúpido ainda o cliente que o aprovou e pagou por ele. E Vívian vem à luz de dentro do carro prata com logomarca indecifrável na porta. Uma versão inusitada dela. Os cabelos castanhos-acobreados à altura dos ombros e lisos; não mais um tapete persa de caracois a lhe bater pela cintura. Uniformizada com um conjunto de calça e camisa sociais verde, um verde não dos mais otimistas, eivado por um leve desespero de marrom, um verde-cáqui; não mais a trajar as indefectiveis camisetas brancas Hering com desenhos, mensagens e letras de músicas impressos em silk screen, que ela mesma confeccionava, nem as desbotadas calças de brim. No bolso da camisa do uniforme, o mesmo logotipo da porta do carro prata; não mais amuletos egípcios ao pescoço nem mais broches com palavras de ordem e fotos de seus ídolos cravados ao peito. Difícil até associá-la à Vívian de há 12, 13 anos. A Vívian que adorava fumar uma maconha e chupar a rola de Rubens. Às vezes, ao mesmo tempo. Uma tragada e uma abocanhada. Rubens levava uns dois dias para tirar o cheiro da erva dos pentelhos.
Vívian não vê Rubens ao entrar na loja. Dirige-se ao balcão do café. À esquerda da entrada. Rubens está ao fundo, à direita. É só quando Vívian pega seu cappuccino acompanhado de um muffin, que é um bolinho metido a besta, ou um bolinho que os metidos a bestas consomem, e se vira atrás de um lugar para se sentar, é que dá de cara com Rubens olhando pra ela. Sem se levantar, Rubens empurra com o pé esquerdo uma das banquetas da mesa em se encontra. Um convite para que ela se sente. Convite aceito.
- Bebendo já a uma hora dessa? diz Vívian, apontando para o latão.
- Já, não. Ainda.
- Supondo que você more no mesmo apartamento, está bem longe de casa, hein? Tirou carta enfim?
- Moro. E não, não tirei carta. Só precisei andar um tanto hoje.
- A velha insônia? - Vívian bebendo seu café.
- É.
- Você tinha até um nome pra ela, como era mesmo, uma coisa parecida com a Loira do Banheiro...
- A Viúva Branca; muito mais classudo.
Vívian ri. Rubens prefere vê-la rir do que rir também.
- Você não muda, né?
- Mudar pra onde? - e seca mais um latão.
Vívian toma outro gole de café e dá uma mordida no muffin, estragando assim o seu batom. Rubens volta com outra lata e aponta para o peito dela, para a logomarca bordada no bolso, como a perguntar, que porra é essa?
- Uma empresa de fertilizantes petroquímicos - fala Vívian, que se formara em Agronomia e, à época em que estava com Rubens, militava pela agricultura familiar e inclusiva.
- Uma multinacional? - alfineta Rubens.
- Transnacional - corrige Vívian - com muito capital brasileiro investido, com projetos sociais, programa de gestão de carbono, ganhamos o selo verde da Onu há dois anos...
- Calma, pode parar com a propaganda - interrompe Rubens -, ou de se justificar, eu só tô te sacaneando um pouco, você aí toda uniformizadinha, falando bem de conglomerados, dizendo "ganhamos" o selo verde e tal. Ainda fuma uma maconhazinha?
- Vá se fuder, Rubens!
- E uma rola, ainda chupa?
- Sua mãe deve chupar. Tá falando que me vendi, né?
- De jeito nenhum. E nem teria nada com isso se você tivesse. Só tô me divertindo um pouco com a inevitabilidade da sua mudança, ou das concessões feitas ao que defendia. Normal. Agricultura familiar e sustentável só bota dinheiro no bolso e comida na mesa das ONGs. Como eu sempre disse.
- Você continua o mesmo filho da puta.
- E não é mesmo? - e inaugura a nova lata com um longo gole.
- Todos temos que pagar nossas contas, Rubens.
- Ou não fazê-las.
- Tá, tinha até me esquecido da sua muquiranice...
- Frugalidade
- Seu cu. ´Cê tá no mesmo apartamento, até ai, tudo bem, mas vai me dizer que ainda não tem telefone celular.
- Nem fixo.
- E aquela TV de tubo de 20 polegadas?
- Não, não tenho mais ela.
- Até que enfim. Comprou uma de tela plana, pelo menos? Umas 30 polegadas.
- A antiga queimou. Não comprei outra.
- Como você mesmo diz : pãããããããta...
Agora é Rubens que ri e dá outra desfalcada no latão.
- Vai me dizer que tem também aquele rádio com toca-fitas e um toca-CD que não lê nem mp3, que só tocava aqueles piratas do Zeca Baleiro?
- Tenho. E ele funciona. Mas comprei outro, um menorzinho, com toca-CD que lê mp3 e até uma entrada pra pen drive. Por quem me tomas, minha linda, por algum homem das cavernas? Embora, poucas vezes eu tenha me sentido tão em casa quanto na tua caverna.
Vívian ri.
- Besteira querer ficar brava com você.
- Esta aqui acabou - diz Rubens, apontando para o cadáver de mais um latão -, dá tempo de você tomar outro café?
- Rapidinho, dá. Tenho que pegar minha amiga do trabalho na casa dela ainda, e visitarmos um cliente a uns 100 km daqui, tá  marcado pra chegarmos lá às oito horas, mas rapidinho, acho que dá.
- Na falta de outra opção, aceito a sua rapidinha - diz Rubens.
Rubens vai à geladeira, pega outra cerveja; Vívian, ao balcão, outro cappuccino.
- Não faz mais café em casa? - pergunta Rubens - você fazia um café bem bom.
- Faço. É que a semana foi corrida para mim, nem deu tempo de passar no supermercado, e quando fui fazer em casa hoje cedo, vi que estava sem nenhuma cápsula.
- Cápsula?!?!?! - finge um espanto jocoso, Rubens - daquelas de alumínio, não biodegradáveis?
- Tá, tá, pode tirar sarro, vai...
- Cápsulas daquelas cafeterias automáticas, eletrônicas, sei lá...
- É...
- Comprou aquela do George Clooney?
- Filho da puta! Pra quem não tem TV em casa, até que está bem por dentro das propagandas, né?
- Eu não tenho TV, mas muitas das minhas mulheres têm.
- Velho safado. Safado e mentiroso. E o seu café?
- Coador de pano.
Vívian gargalha.
- Coador de pano? E isso ainda existe?
- Ainda sobrevive por aí, é questão de saber onde procurar... se bem que o último, eu mesmo precisei fazer e costurar.
- Sério?
- Claro que não.
Os dois riem. Juntos. Pela primeira vez neste reencontro.
O dedo mínimo da mão direita de Rubens trisca e desliza fetio agulha de disco de vinil pelo dorso da mão esquerda dela. Que recolhe a mão para debaixo da mesa. Vívian sabe que os anticorpos de ex-relacionamentos podem ser muito eficazes contra a recaída de novas trepadas, mas totalmente impotentes contra a cumplicidade bem humorada; inócuos em manter as pernas fechadas para quem a consegue fazer rir.
- Essa aliança - recomeça Rubens - que está agora na mão esquerda é a mesma que estava na direita na nossa época?
- É.
- O mesmo cara?
-  O mesmo cara.
- Parabéns.
- Obrigada.
- Parabéns para ele, eu quis dizer. 
- Você sabe que eu teria largado tudo, né? - diz Vívian.
- Sei. Por isso não pude pedir pra você largar.
- Mentira, Rubens. Uma mentira bondosa. Você sabe ser delicado e gentil quando quer. Ou quando precisa. Você não me pediu pra largar tudo porque nunca foi tão intenso pra você quanto foi pra mim. Por essa sua honestidade, eu te agradeço até hoje.
- Mais intenso, menos intenso... como medir para quem foi mais ou menos? Qual a régua ou a balança? O quanto cada um está disposto a abandonar, a largar pelo outro? Ou o quanto cada um está disposto a preservar de si pelo outro?
- As palavras sempre foram seu esconderijo, Rubens.
- De qualquer forma, duas escalas de medida das mais imprecisas. E sem uma fórmula de conversão entre elas.
- Bobagem. Se foi tão forte também para você, por que não aconteceu?
- Foi tão forte - diz Rubens.
- E por que não aconteceu?
- Porque eu fui mais fraco.
Vívian ri. Sem abrir a boca. Pelo nariz. Mais um suspiro de ironia que um riso.
- Pois que seja fraqueza, então? - pergunta ela e levanta a xícara de café em chamamento a um brinde.
- Pois que seja fraqueza, então. - diz Rubens, e toca a borda da xícara dela com a borda do latão. Os dois acabam suas bebidas.
- Tenho mesmo que ir agora, Rubens. Você ainda vai ficar?
- Só o suficiente pra te ver sair.
Ela se levanta e vai. Quando está para chegar na porta, Rubens a chama. Ela olha para ele.
- Até que você fica bem gostosinha nesse uniforme, toda "social", executiva, empoderada.
Vívian lhe faz o sinal de vá tomar no cu com a mão  e zarpa em seu carro prata com logotipo indecifrável na porta.
Rubens pega mais três latões para a caminhada de volta e também sai. O sol e os pardais começam a assumir os seus postos. Ele ainda lutaria mais quatro dias contra a Viúva Branca. Adormeceria com a FM de sua memória sintonizando um antigo sucesso dos anos 80. E quantos uniformes ainda vou usar, e quantas frases feitas vão me explicar, será que um dia a gente vai se encontrar, quando os soldados tiram a farda pra brincar...

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5 Comentários

  1. Putz. Sem palavras para esse conto.

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  2. Parece que a trilha do dia 10 foi Lulu Santos. Foi?

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    1. coincidentemente, apenas... para quem acredita nelas, nas coincidências.

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  3. Uau. Esse final me surpreendeu. Teve um toque de simbologia e sensibilidade feminina, algo extremamente raro. Adorei. Adorei mesmo.
    Impressão minha ou Rubens é seu alter ego?

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