Cerveja-Feira (18)

Por aqui, já passaram cantores de samba, rock e sertanejo, quatro ex-Presidentes da República e o nosso atual, escritores, jogadores de futebol, personagens de desenho animado, gostosas (Scarlett e Sandy) e até um Papa. O que mostra o quão democrática é a sacrossanta cerveja. O que deixa claro (pode ser escura, também) e irrefutável que a cerveja é livre de todo e qualquer preconceito, não vê cor, credo, raça, sexo, ideologia, profissão ou nível social.
Só estava faltando, agora, era mesmo um santo. Sim, um santo milagreiro, reconhecido, canonizado e tudo pela Igreja Católica. Mas um santo encher a lata (ou esvaziá-la) não é um paradoxal desrespeito às escrituras? Não é um pecado?
Porra nenhuma!
Primeiro que pecado é a gula, é a glutonia, o comer em excesso; quem já ouviu falar, ou leu em algum dos evangelhos, reconhecidos ou apócrifos, de um pecado capital ou mesmo venal que condene o entornar em demasia, o enfiar o pé na jaca? Segundo que os santos, de todos os trabalhadores que carregam o mundo às costas, são dos que mais merecem uma cervejinha ao chegar em casa, ao fim do expediente, dos que mais fazem jus a relaxar tomando uma(s) antes de, paganamente, cairem nos braços de Morpheus. O santo passa o dia todo no call center de Deus, a ouvir todos os tipos de queixumes, lamúrias, tragédias e desgraceiras. Passa o dia todo a realizar milagres e prodígios em troca de velas acesas, novenas e joelhos esfolados em escadarias. Puta que o pariu se um sujeito desse não merece uma cerveja. Um barril. E, por fim, que santo é santo, mas não é de ferro.
Santos cervejeiros não são novidade. Muitos são os relatos sobre santos chegados em dar uma beiçada numa loira gelada. Inúmeros são os santos devotos da Santíssima Trindade do Malte, do Lúpulo e da Cevada Santa. São Venceslau, São Floriano, São lourenço, São Patrício, São Columbano e até uma santinha do pau oco, Santa Hildegarda de Bingen.
O santo a figurar hoje no cerveja-feira não é qualquer um. Não é santo das boas e baratas (este serei eu, o Santo Azarão, que, depois de morto e canonizado, dedicarei-me a promover miraculosas promoções de cervejas nos supermercados, botecos e lojas de conveniência). É santo dos mais especiais e afamados no meio. Um santo artesanal e gourmet.
São Arnulf de Oudenburg, nascido Arnoldo de Soissons (1040 - 1087). São Arnulf é nada mais nada menos que o padroeiro dos coletores de lúpulo e dos cervejeiros da Bélgica, uma das mecas da Cerveja Mundial. Ser alçado a posto de tal realeza num país que possui das melhores cervejas do planeta não é para qualquer um. Quais terão sido os feitos miraculosos de São Arnulf, quais suas santificadas contribuições à arte da cerveja?
Pois o Azarão conta o nome do santo e também o milagre.
Século XI, ano de 1080 da graça do Senhor, o então Bispo de Soissons, de saco cheio e desiludido das trambicagens e das politicagens internas da Igreja, renunciou ao seu episcopado, retirou-se da vida pública e fundou o Mosteiro de São Pedro, em Oudenburg, onde começou a fabricar cerveja e a promover o seu consumo entre os aldeões e os camponeses que viviam nas cercanias do mosteiro, a apregoar o "dom da saúde" que a bebida evocava.
Arnoldo de Soissons recomendava, inclusive e enfaticamente, que o povão tomasse cerveja em lugar da água. Pãããããta que o pariu!!! Eu teria renunciado ao meu ateísmo e me tornado fácil, fácil, em coroinha do bispo Arnoldo. Isso é o que eu chamo tomar cerveja feito água!
Não era, no entanto, por safadeza, libidinagem ou qualquer outra falha de caráter a santa prescrição do bispo. Eram tempos de Peste Negra na Europa. Uma das epidemias mais mortais que já se abateu sobre a espécie humana. A bactéria Yrsinia pestis é de matar de vergonha o aprendiz coronavírus. Perto dos índices de mortalidade da peste negra, a covid-19 é menos que uma gripezinha, é uma unha encravada, se muito.
E não é que a substituição da água da região pela cerveja do bispo Arnoldo fez diminuir em muito os infectados e os mortos pela Peste? Os micro-organismos não eram conhecidos à época, nem mesmo sonhados. O "dom da vida" evocado pela cerveja do bispo Arnoldo nada mais era que o resultado da pasteurização da água usada no fabrico da cerveja durante a etapa de fervura e cozimento. Milagre, berravam bêbados os aldeões, milagre!!! Tal "milagre" não ocorreu apenas em Oudenburg, Bélgica. Ele se repetiu em várias outras cidades, aldeias e povoações europeias; na Inglaterra, na França, na Espanha. Sim, meus caros, a civilização ocidental tem grande, eterna e impagável dívida para com a cerveja. A cerveja, muitas vezes, nos salvou da extinção.
Outra história contada a respeito do bispo Arnoldo de Soissons, e essa, sim, se verdadeira, um milagre inexplicável pela ciência, se deu quando o teto da cervejaria do mosteiro desabou, comprometendo boa parte do abastecimento. É contado que Arnoldo de Soissons, então, pediu a Deus para multiplicar o que sobrou da bebida. E Deus multiplicou. E suas preces foram prontamente atendidas. Fazendo a alegria dos monges de sua abadia e da comunidade.
Cristo, dizem, multiplicou peixes, pães e verteu água em vinho. Por que o  bispo Arnoldo não pode ter obrado a multiplicação da cerveja? De preferência com uns torresmos e queijinhos meia cura? Eu acredito!
Além disso, diferente de seu ainda não nascido colega de profissão, o monge Gregor Mendel, o Pai da Genética, que cultivou ervilhinhas inúteis e insossas, o bispo Arnoldo cultivou e trabalhou no cruzamento e na seleção de melhores linhagens de lúpulo.
Morreu aos 47 anos, em 1087. Em reconhecimento aos seus milagres e aos seus inestimáveis serviços prestados às criaturas do Criador, foi canonizado pela Santa Sé em 1121, sob o nome de São Arnulf de Oudenburg
É dele a cerveja-feira de hoje.

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3 Comentários

  1. Futuro Santo Azarão e sua pesquisa com um tanto de religião, história, críticas e humor. Eu já li algo sobre esse Arnulf mas nunca pesquisei outros santos padroeiros ligados às brejas.

    Êxito no projeto "Santo Azarão" e muitas promoções milagrosas aos futuros devotos.

    Grande abraço

    Cássio - Recife/PE

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    1. E nem precisarão me agradecer com rezas, peregrinações e outros flagelos. Bastará seguir uma tradição muito comum entre os caipiras aqui de São Paulo e também de Minas : antes de tomar um copo, derramar um pouc e dizer, esse é pro santo!

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  2. Mesmo que seja ficção, sugiro um personagem para esta série: Frei Tuck, amigo de Robin Hood.

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