Não é Carnaval, Mas é Madrugada (15)

Não gosto de carnaval. E não é exclusividade da folia de Momo, esse meu desgostar. Tenho repulsa a toda atividade ou manifestação que implique em aglomerações, em ajuntamentos, em que centenas, milhares de pessoas, abrem mão - voluntária e prazerosamente - do que é mais caro e distintivo (ou deveria ser) à espécie humana, a individualidade, e se fundem e se esmerdeiam numa única massa acéfala e indiferenciada.
Por isso, não gosto das religiões. De futebol. De shopping centers. Do carnaval.
Gosto, contudo, de uma parcela significativa das músicas de carnaval. O filme pode ser uma bosta e a trilha sonora, boa. Gosto, na verdade, não das músicas feitas "para" o carnaval, para alegrar os foliões nos bailes, para tocar nos salões durante a folia - embora haja marchinhas (das muito antigas) muito bonitas e inspiradas. Sim das músicas que versam sobre os bastidores do carnaval, sobre  o que não se passa nem nos salões nem na avenida, sobre o antes - a expectativa, os preparativos, o gozo represado - e, sobretudo, sobre o depois, as decepções, a ressaca, o rescaldo; enfim, as Cinzas. Sim, não gosto das músicas de carnaval, mas adoro as das Cinzas, do anticlímax, da contraeuforia.
Músicas como Ela Desatinou (Chico Buarque), Retalhos de Cetim (Benito de Paula), Bloco da Solidão (Evaldo Gouveia), a bela Cachaça Mecânica (Erasmo Carlos), a belíssima Vila Esperança (Adoniran Barbosa) e tantas outras, muitas das quais registradas aqui no Marreta.
Maria, Carnaval e Cinzas : conhecia a canção por nome, de ouvir falar, sabia ser uma música que fora defendida por um Roberto Carlos em inícios de carreira (um dos raros sambas gravados por ele) no III Festival da Música Brasileira (1967), mas confesso - e eu mesmo me prendo, julgo e condeno sumariamente : nunca a tinha escutado. Hoje, conduzido até ela pelas tortuosas e inescrutáveis trilhas da internet, ouvi-a. 
Maria nasceu ao nascer de um carnaval. De fantasia foi o seu enxoval. Ocupados da folia, não lhe deram, como a tantas Marias, nome de santas, nome de flor. Somente Maria, semente de samba e de amor. Não era noite nem era dia. O futuro, incerto, por certo, lhe sorriria. Cresceria porta-estandarte. Cobiça dos olhos e dos sonhos dos foliões. Morre, porém, a nascitura Maria na quarta de cinzas do mesmo carnaval. De cinzas foi o seu enxoval. Que lhe dessem o nome, então, como o de tantas, nomes de santas, nome de flor. Jamais a sorte lhe sorriria. Jamais seria porta-estandarte, jamais estaria nos olhos e nos sonhos dos foliões. Maria, um rebento de samba e de dor.
Uma música bonita pra caralho! Uma letra primorosamente construída, arquitetada como há tempos não se faz. Triste pra cachorro. Cinza. Cinzas.
A música pegou o quinto lugar do Festival, "perdendo" para :
1)Ponteio (Edu Lobo/Capinam)
2) Domingo no Parque (Gilberto Gil);
3) Roda Viva (Chico Buarque); 
4) Alegria, Alegria (Caetano Veloso) 
Difícil dizer que houve injustiça ou favorecimentos no resultado, afinal, eram (são até hoje), todos os classificados, pesos-pesados da MPB, mas o fato é que Roberto Carlos sempre foi muito mais afinado que Chico Buarque e que Caetano Veloso, muito mais melodioso que Edu Lobo,  e que, sim, houve uma resistência/preconceito muito grande em relação àquele cabeludo, àquele cantor de iê-iê-iê querer se meter onde não foi chamado, se meter em um festival de música "séria", como bem mostra o misto de vaias e aplausos durante a apresentação da música (clicar link no final da postagem).
Vamos, enfim, às Cinzas, à Maria, Carnaval e Cinzas. É de arrepiar. É de fazer chorar. Ainda mais se você já tiver tomado umas a mais, como eu. Ainda mais se for madrugada. Ainda que não seja carnaval.

Maria, Carnaval e Cinzas
(compositor : Luís Carlos Paraná/ intérprete : Roberto Carlos)
Nasceu Maria quando a folia
Perdia a noite ganhava o dia
Foi fantasia seu enxoval
Nasceu Maria no carnaval.

E não lhe chamaram assim como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Seria Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de amor.

Não era noite, não era dia
Só madrugada, só fantasia
Só morro e samba, viva Maria
Quem sabe a sorte lhe sorriria.

E um dia viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
Decerto estaria em plena folia 
Nos olhos e sonhos de mil foliões.

Morreu Maria quando a folia
Na quarta-feira também morria
E foi de cinzas seu enxoval
Viveu apenas um carnaval.

Que fosse chamada, então como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Em vez de Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de dor.

Não era noite, não era dia
Somente restos de fantasia
Somente cinzas, pobre Maria
Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte
Sambando com arte puxando cordões
E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões
.

Para ouvir e ver a emociante interpretação do Rei, é só clicar aqui, no meu poderoso MARRETÃO 

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4 Comentários

  1. Do caralho mesmo. Eu gosto do Carnaval, aliás gostava, não sei se ainda gosto, achava sensacional a jazente permissividade moral de burlar as regras por alguns dias: de chegar tarde, vestir-se escandalosamente, dançar e beber até cair na rua... Mas a graça estava principalmente em como as pessoas, mais sérias, faziam isso, hoje é 'carnaval' e sacanagem o ano inteiro.
    "J"

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    1. Concordo com você. A licença e a licensiosidade dos quatro dias de carnaval faziam algum sentido, hoje, a putaria à solta descaracterizou até isso.

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  2. Não gosta de aglomerações, de ajuntamentos? Mas na sua juventude bem que você gostava das festas da faculdade, das festas na casa dos amigos e das festas em que se fantasiou de Batman, só que essa você não foi porque encheu o cu de cachaça e subiu na grade da janela e gritou feito uma bicha louca que queria comer um rabo. Mudou de ideia rápido, mas seu passado te condena.

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    1. Bom, se eu gritei que queria comer um cu, não posso ser classificado como bihca louca; se eu tivesse dito, eu quero dar o cu, aí você teria alguma razão.
      Eu, fantasiado de Batman? De onde tirou essa porra? Acho que você é que tá querendo dar uma pegada no meu morcegão.

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