Entre o Cantar do Galo e o Dormir do Gato

Madrugada. Há tempos que não me sentava à mesa para um gole com ela. Quase três da manhã. O demônio anda, gargalha, come tira-gostos e enche a cara pelos corredores e pelos cômodos de mim. Como faz em todas as noites. Mas, hoje, meu sono não consegue fechar os ouvidos para as suas risadas, suas provocações, suas promessas de danação eterna.
Na caneca : vodka Natasha, Coca-Cola e gelo, minha Guerra Fria, minha Palestina.
No velho corpo : só a cueca mais frouxa que tenho, lassa nas pernas, no saco e na barriga, que a esposa sonha em capturar, cortar à tesoura e jogar fora; por isso, a mantenho oculta ao fundo falso de uma gaveta, como mantinha ocultas, há décadas, das vistas censoras de minha mãe, várias revistas de mulher pelada : mães e esposas, sempre atentas e vigilantes, prontas a jogar fora tudo que proporcione algum tipo de conforto ao filho/marido/homem. Mantenho-a, a cueca em farrapos, que não faria diferença substancial caso vestisse o Rei que Está Nu, para essas noites de urgências aflitivas, de recidiva e de recaída por asas. O que resta ao homem com corpo, mente e alma presos? Qual sua última possibilidade de grito? Uma cueca frouxa. Se não livres o corpo, a mente e a alma, no mínimo, o saco; depositário de meias vidas natantes.
De fundo musical : um velho toca-CD (incrível eu já chamar de velho um toca-CD) esforçando-se em ler músicas fisgadas, uma a uma, pelo e-mule, da época da internet discada; CDs que e-mulam as velhas fitas cassetes guardadas em minhas gavetas e gravadas às FMs. 
Guerra Fria na caneca, cueca frouxa no corpo, simulacros de fitas cassetes e de FMs no toca-CD e vou com eles me sentar à sacada. Chuva mansa de verão lá fora (daquelas que só se percebe contra a luz do poste de iluminação pública), um mundo que não é mais meu, um mundo pelo qual não mais trafego, um mundo que vejo, hoje, como quem admira um cartão-postal, uma foto da National Geografic.
Vinte vírgula e um espaço que meus olhos presbiópicos já não se importam mais em diferenciar graus no termômetro comprado como souvenir em uma viagem.
Sento-me a um banquinho, tipo tamborete, de revestimento amarelo, que me acompanha há 30 anos ou mais, a substituir temporariamente as cadeiras de vime trançado que arrebentaram em poucos anos de uso, como todo o moderno.
Sou, agora, às três da manhã, soldado equipado - Guerra Fria na caneca por cantil de combate, cueca frouxa a acariciar o saco melhor do que qualquer amante já o fez por farda camuflada, músicas capturadas da FM Outrora (1967 MHz) por ordem unida -, sou o Falcon.
Sento-me, ajeito-me e ponho-me à trincheira, à tocaia. À espera. À espera de uma chuva de meteoros (ou de uma nova ideia, ainda que fátua e meteórica), de um sorriso de uma estrela cadente (ou de uma nova ideia, ainda que decadente), da aparição de um LP voador, de um disco não-identificado, sem capa, encarte nem créditos, passível, no entanto, de ser tocado na minha velha vitrola Philips, da buzina do fusca da Morte a me chamar para coadjuvante num road movie.
Vêm, na sequência - um verdadeiro serial etilic -, doses e mais doses de Guerra Fria; choramingam faixa após faixa do CD. Estiam, no entanto, as chuvas de meteoros; emburram, estrelas cadentes; escolhem os pratos de outras  vitrolas como base e plataforma de pouso, porém, os LP voadores.
A chuva cessa, o termômetro se cansa dos vinte vírgula alguma coisa graus e sai de seu coma, de sua animação suspensa, de seu túmulo criogênico e revela sua verdadeira face.
As ideias, feito ratos de Hamelin, são conduzidas pelos feromônios de Calíope a amantes que lhe são mais atenciosos e viris.
Quatro da manhã. Ouço o tossir, o pigarrear, o gargarejo dos primeiros galos da manhã. Ouço a chegada, de volta à casa, cambaleando bêbadas de muros, telhados e luares, das minhas gatas, a Cleonice e a Dona Preta - sirvo-lhes o café da manhã, uma ração nova sabendo a salmão e espinafre; elas comem, se esfregam um pouco em minhas pernas, feito crianças agradando aos pais para não terem que lavar os pratos, ou arrumar as camas, e vão dormir.
Quatro da manhã. Só eu existo nesse hiato, nessa troca de turnos; só eu insisto em existir nesse limbo, nesse abismo irrespirável entre o cantar do galo e o dormir do gato.

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7 Comentários

  1. Pelo visto a madrugada não só me inspirou.
    Belo texto. Título também.

    Abraços!

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    1. Obrigado. Também gostei bastante de tê-lo escrito, há tempos não varava mesmo a madrugada, sozinho, tomando umas e escrevendo (o duro foi entender a letra no dia seguinte quando fui digitar). O título, imodéstia à parte, ficou bem legal e surgiu de última hora, como quase sempre acontece.
      Abraço

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  2. Adorei o final, "As ideias, feito ratos de Hamelin, são conduzidas pelos feromônios de Calíope a amantes que lhes são mais atenciosos e viris..." Foda. E o que será que pensam as gatas quando o encontram acordado?
    "J"

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    1. Na verdade, as gatas só me encontram acordado. E, nesse caso, usei de uma licença poética, pois elas nunca chegam de madrugada, elas nunca saem às ruas, moramos em apartamento, 3º andar, telas nas janelas, sacada etc.
      Elas não saem para os muros, telhados e luares, foram castradas da noite. Assim como eu.

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    2. Então, deve ser exatamente nisso que elas pensam, humano.
      "J"

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  3. Usando um vocabulário que lhe é caro, este texto ficou do caralho! Nada sei de Guerra Fria e de gatos, mas endosso tudo o que escreveu, como se eu tivesse sido psicografado. A cueca então, ficou genial. Parabéns!

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    1. Você também tem as suas, né? Aquelas cuecas que deixam o bicho solto. Chega uma idade em que uma cueca frouxa é um dos raros prazeres que ainda podemos nos dar ao desfrute.

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