Faz tempo que vejo o mundo turvo
Embaçado
Embaralhado
Em vultos sobrepostos
Cheio de zumbidos nas imagens
Feito duas ou mais estações de rádio
Que teimam em ocupar a mesma frequência no dial.
O horizonte
Os prédios e os monumentos
As árvores
Os itinerários dos ônibus
Os produtos nas prateleiras do mercado
Os outdoors
Os cães vadios e os gatos saltimbancos
As notícias dos jornais
Os pássaros nos fios
Os mendigos nos meios-fios
A peituda que passa pela outra calçada
O asilo de velhos
O saldo na tela do caixa eletrônico
A comida no fogão
O japonês da quitanda em meio à sua paleta de frutas e verduras
A minha letra no papel...
Turvo
Tudo turvo.
Sentei-me às máquinas do oftalmologista.
Tudo bem, elas disseram,
Para perto, um leve grau
Para longe, nada a consertar
Tudo certo com a visão além do alcance
Podemos melhorar sua leitura de um livro
Nada a fazer quanto à sua leitura do mundo,
Diagnosticaram as máquinas do oftalmologista,
Que nem olhou para mim
Que nem me viu
Que só escreveu em seu receituário o que lhe ditaram as suas máquinas
Que só estava ali como intérprete
Como interface
Como boneco de ventríloquo
Só porque as máquinas ainda não tem mãos
Nem títulos e diplomas de doutor em suas paredes.
Desculpei-os, o oftalmologista e suas máquinas
Eles entendem muito de olho
Mas nada do que ele vê.
Só quando tudo descuida de ser visto
É que vejo tudo com nitidez
De madrugada
Na semiescuridão
Quando as formas
Descansam de suas arestas
E passeiam desproporcionais
Com suas vestes velhas, largas e puídas
Roupas de ficar em casa;
Quando as cores
Descansam de suas alegorias
E passeiam monocromáticas
Com seus arco-íris de sombras
Largam mão de sua pavonice;
Quando as máscaras
Descansam dos rostos que juraram servir
E passeiam de cara lavada
Marcham em blocos
Em carnavais de Veneza.
Mas a madrugada dura pouco pra mim
Ando com pouca resistência às altas horas
Baixa tolerância à privação do sono
Também à longas vigílias
À vida, de forma geral.
Posso arrancar meus olhos
Mas não posso eliminar a estática e a interferência
O zumbido
O sentiria por outras vias
Por cada um de meus poros.
Por que Édipo arrancou os próprios olhos?
Por acaso, um cego não é capaz de continuar a comer a mãe?
Até mais fácil, não vendo que é sua mãe.
Por que Édipo não arrancou o pau?
Falso arrependimento
Mise-en-scéne
Viadagem de grego.
Posso trocar minhas lentes
Lapidar a laser meus cristalinos
Mas não posso trocar de mundo.
E o filho da puta do oftalmologista
Nem me viu.
2 Comentários
Olha, Marretão, ficou super legal este texto. ótimas sacadas, ótimas imagens, ótimas ideias. Agora, lance do oftalmologista é "licença poética" ou realidade? Se for realidade, espero que ele não tenha cobrado os olhos da cara. Independente do preço, você bem que poderia mandar ele tomar no olho do cu (eu não resisti a um jogo de palavras). Jotabê
ResponderExcluirum pouco de cada, um pouco licença poética e um pouco realidade, mais licença poética, claro. Tenho leve presbiopia, a famosa vista cansada, inevitável depois dos quarenta, mas para longe realmente está tudo bem. Não que eu não deixe de ver, às vezes, as coisas meio disformes, desfocadas, mas é mais cansaço mental que físico, é muito mais saco cheio de tudo de errado que vemos do que um defeito de visão em si.
ExcluirSobre o olho do cu, veja esse pequeno texto (se é que já não viu) que escrevi por conta de minha primeira ida ao oftalmologista:
http://amarretadoazarao.blogspot.com.br/2013/01/consideracoes-sobre-as-diversas-visoes.html