Magali Quer Uma Pica

O fato a seguir torna o surreal, plausível, trivial.
No Acre, uma professora de uma série primária se utilizou de uma tirinha de jornal como enunciado de uma questão para seus pupilos. Na tirinha original, da Turma da Mônica, Cebolinha e Magali chegavam a um carrinho de pipoca e Cebolinha fazia seu pedido, Eu quelo um saco de pipoca; em seguida, o pipoqueiro voltava-se para Magali e perguntava, E a garotinha? O que sobrar, respondia a esfomeada Magali.
A questão, de múltipla escolha, cobrava que o aluno fosse capaz de identificar a reação manifesta na cara do pipoqueiro e a resposta correta era a letra D, espantado.
Só que por alguma razão, ou pela mais absoluta falta dela, a professora resolveu imprimir sua marca autoral à tirinha e modificou-a, revelando toda a sua pujança peidagógica.
A "obra" acabada ficou assim : E a garotinha?, o prestativo pipoqueiro; Uma pica, responde uma insaciável Magali.
Isso mesmo! Uma pica, um caralho, um pau, um cacete, uma rola!
Ao receberem as provas dos filhos, alguns pais procuraram a direção da escola em busca de esclarecimentos. Que não foram dados a contento. O que os pais receberam foi uma série de desculpas esfarrapadas. 
Primeiro, a professora resolveu passar a batata quente para outras mãos, jogar a culpa em outrem, revelando toda a ética e o coleguismo típicos do meio professoral, disse que a culpa era da coordenação, que avaliara e aprovara o teste antes de sua aplicação. Ela pôs a pica na boca faminta da Magali, mas a culpa foi da coordenação, que deixou o absurdo passar incólume, o que também não deixa de ser verdade, mas enfim...
Acuada, a professora acabou se complicando ainda mais com suas "explicações" para o ocorrido, afirmou que a maldade está na cabeça do adulto e não da criança e que isso não era um palavrão. Não, não é, não
Durante a avaliação, alguns alunos avisaram a professora sobre a presença de uma "imoralidade na prova", mas ela negou que pica fosse um termo maldoso. 
Percebendo a impossibilidade da coordenação pagar o pato em seu lugar, a professora tentou novo subterfúgio e jogou a culpa para cima da secretária da escola, que teria digitado erroneamente a prova. A corda sempre arrebentando do lado mais fraco : "No rascunho era outra expressão, aí a moça que elabora a prova puxou a tirinha da internet e não percebeu que ela estava com a expressão errada", disse a zelosa mestra, mais uma vez incapaz da honradez de assumir seu próprio erro, mais uma vez dando um belo exemplo do que é educação para seus alunos.
A coordenadora da escola se mostrou tão competente de suas funções quanto a professora das dela, admitiu que chegou a revisar a versão da prova já com a expressão alterada, antes dela ser aplicada. Porém, disse ter pensado que o uso da palavra, como se tratava de uma questão de interpretação, fora intencional.
Sim, que foi intencional, foi, mas com que intenção, exatamente?
Ou seja, a pica passou por várias e várias mãos antes de chegar às dos alunos. E ninguém percebeu, ou até sim, mas não achou nada de errado com sua presença. 
Bom, para mim está bem claro que a tal da pica ou é coisa das mais banais, das mais comuns e corriqueiras para a equipe peidagógica da escola, ou o contrário, que a professorada tenha já se esquecido do que é uma pica, esquecido-se, pela falta do uso e da prática, das verdadeiras utilidade e destinação de um caralho.
Acredito, no entanto, e tudo daqui em diante são suposições, que tenho a explicação mais racional possível para o imbróglio. Tenho quase certeza de que o incidente foi provocado pelo bom e velho ato falho, um erro involuntário na fala, na memória, ou mesmo numa ação física, com origem no inconsciente e desencadeado por um desejo reprimido, por uma necessidade não satisfeita, não atendida.
Por minha observação de quase duas décadas da categoria docente, noto que a maior carência dessa classe, que já foi tão valorosa, não chega a ser os baixos salários que recebe - e que realmente são miseráveis, humilhantes -, nem as péssimas condições de trabalho a que é submetida - e que são de fato degradantes -, tampouco o absoluto desrespeito com que é tratada pelos alunos e população em geral, nada disso. A maior carência que noto, a que mais ressente e entristece a categoria, é a da pica.
Já disse o sábio Paulo Salim Maluf, e isso há algumas décadas, que professora não ganha mal, professora é mal casada. De lá para cá, a coisa piorou. E muito. Às mal casadas de Paulo Maluf, juntou-se o enorme contigente atual das descasadas. 
A situação é crítica entre as nossas queridas professorinhas, periclitante, de matar cachorro a grito. A falta da pica é lugar-comum no meio docente. A pica é a necessidade mais premente da classe. E com o mercado de machos em baixa, conseguir uma pica se tornou uma ideia fixa entre a categoria, quase que uma obsessão. Um homem para chamar de seu é preocupação que ocupa as 24 horas do dia da professora descasada.
E o ato falho, implácavel e infalível, rompeu a amarras do consciente e expressou-se pela boca gulosa da Magali. Só faltou a inclusão de duas outras alternativas à questão : letra E, envergonhado; letra F, excitado.
Talvez - eu ainda à cata de uma explicação razoável -, a professora tenha desejado homenagear o povo indígena, ainda tão presente no estado do Acre, e feito alusão à clássica piada do índio, na qual uma mulher muito da gostosa pergunta para um índio, que a comia com os olhos, se ele quer pipoca. E o nosso bom (e nada bobo) silvícola, responde : índio não quer pipoca, índio quer "pô" pica.
Falando um pouco mais a sério, o mais provável é que a tirinha tenha sido copiada da internet já dessa forma, adulterada, e usada na prova sem maiores cuidados e averiguações, tão necessários a qualquer material que recolhamos da internet. Descuido que pode ser resultante da sobrecarga de trabalho com que o professor é obrigado a lidar e a conviver em seu dia a dia, se quiser ganhar um salário minimamente digno. Não estou afirmando que tenha sido isso, nem que essa tenha sido a única razão, mas que a sobrecarga é um forte fator a ser considerado quando a qualidade do trabalho de um professor é afetada, isso é.
De qualquer forma, em um exercício canalha de minha imaginação, posso visualizar a coordenadora revisando a prova e dando de cara com a Magali a dizer que quer uma pica. Com um suspiro profundo, intimamente, ela pergunta retoricamente aos seus botões : e quem é que não quer, minha filha, e quem é que não quer?
Bom, eu é que não!

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3 Comentários

  1. Putz!! Olha onde isso foi parar!! Até a coordenadora kkkkkkk

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  2. Esse texto dá margem a uma série de comentários e reflexões, cada uma apontando para um lado diferente. Pode-se falar do desrespeito ao criador e à propriedade intelectual, pode-se falar da terra de ninguém que é a internet, pode-se falar da qualidade do ensino praticado hoje, da situação dos professores, etc. etc. Deixando a seriedade de lado e para outra hora, preciso dizer que o final é hilariante. Me fez lembrar de uma piada sobre gaúchos, quando o pai de uma moça pretendida em casamento, pergunta ao interessado se quer mesmo se casar com sua "prenda". Diante da afirmativa, vem a admoestação: "Tu deves saber que mulher gosta de pinto grosso!" E a resposta: "Mas bá, tchê, e quem não gosta?" Ótimo texto (a propósito, descobri que um dos meus sobrinhos tem lido o Marreta direto).

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    1. Conheço a piada do gaúcho e confesso que ela foi a base para minha "inspiração" do final do texto.
      Seu sobrinho lê o Marreta por indicação sua? Os pais dele sabem dessa sua influência nefanda sobre ele?

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