O Bicho Era Um Homem

Às segundas, quartas e sextas-feiras, o caminhão da limpeza pública passa a recolher o lixo aqui da rua, geralmente tarde da noite, já à boca da madrugada.
Nesta terça-feira, saí cedo para o trabalho e, como já vem se estabelecendo por costume, dei de cara com uma manhã repleta de lixo, tudo espalhado pela calçada do pequeno prédio em que moro. Latas reviradas e emborcadas, caixas de papelão destroçadas, sacos plásticos dilacerados, todos os detritos pelo chão.
Como se, antes do lixeiro, um bando de animais selvagens houvesse por ali passado em alucinada rapina. Uma orgia de carniceiros.
Urubus psicopatas, ratos traiçoeiros, hienas hidrófobas, Caro Manuel? Não. O bicho não era um urubu, não era um rato, não era uma hiena, estrelado Bandeira : o bicho era um homem.
Eles andam ou sozinhos, ou, no máximo, em dois ou três; se em bandos, não suportariam o próprio cheiro, ou se canibalizariam em competição pela imundície.
São mais uma das subespécies de humanos criadas pelo meio urbano, são os fuçadores de lixo. Passam revirando o lixo alheio às portas das residências, à cata de latas, papelão, plástico, qualquer coisa que possam vender para a reciclagem, são bactérias e fungos hipertrofiados. E o que não lhes interessa, não devolvem aos sacos, esparramam pelo chão. Se rasgam um saco e nada ali lhes serve, aí sim é que, só de raiva, jogam tudo para fora e pisoteiam. São parasitas mal-agradecidos.
À minha infância, cachorros de rua chafurdavam no lixo, era a simpática figura do vira-lata. Era comum vermos as donas de casa, gordas, de avental, ranzinzas e mal-humoradas pelo exaustivo e não reconhecido trabalho doméstico, enxotarem os vira-latas com suas indefectíveis vassouras em punho.
O vira-lata virava um corisco, desaparecia rapidinho rua abaixo, não sem levar algum butim à boca, um osso de frango, uma muxiba de carne etc.
No dia seguinte, estava lá o vira-lata, de novo a provocar a dona de casa. Eram inimigos profissionais, que se gostavam; não haveria a menor graça para o vira-lata revirar o lixo se não corresse o risco de levar uma vassourada, a carreira que levava da dona de casa valorizava sua caça; a dona de casa, por sua vez, não terminaria bem o seu dia se não pudesse xingar e esbravejar com alguém, se não pudesse descarregar no vira-lata toda a raiva e frustração que gostaria, na verdade, de despejar sobre o marido, sobre os filhos, sobre os vizinhos; a corrida ao vira-lata nos fins de tarde era uma espécie de calmante, um prozac da época.
No fundo, no fundo, o vira-lata sabia que a dona de casa jamais o alcançaria, ou o machucaria de verdade, por isso, sempre voltava; a dona de casa também sabia que nunca alcançaria o bichinho e que seria incapaz de realmente quebrar-lhe o crânio à vassouradas, queria que ele voltasse. Eram inimigos de desenho animado, Tom e Jerry, Coiote e Papaléguas (bi! bi!), Batman e Coringa etc.
Bons tempos.
Hoje, não há mais vira-latas em nossos lixos. Não vemos mais a fugidia figura do cachorro magro e sarnento em nossas portas. Os vira-latas foram enxotados de vez de nossos lixos. Enxotados não pelas donas de casa, numa final e definitiva batalha. Enxotados por animais muito mais perigosos, perniciosos, verdadeiros predadores : os humanos fuçadores de lixo.
Enxotados para nunca mais voltarem, pois sabem do real perigo que os fuçadores representam. E esses, os escrotos e desprezíveis fuçadores, ninguém enxota. A dona de casa não sai a brandir sua vassoura contra eles, ninguém escorraça com eles, ninguém lhes chama sequer a atenção para que, no mínimo, não espalhem o que não forem aproveitar.
Ninguém mexe com eles.
Talvez por nojo, o que é procedente; animais que vivem em tocas e covis são mais limpos e asseados que eles, ao menos, enterram seu lixo e seus excrementos, os fuçadores desenterram e espalham os dos outros.
Talvez por medo, o que é justificável, podem mesmo ser muito agressivos, os fuçadores; o racional deve de fato temer o irracional, tente ao chacal tomar-lhe a carniça da boca.
Talvez por pena e compaixão, por os considerarem desvalidos, excluídos, injustiçados, vítimas. Vítimas de quem? Minhas é que não. Talvez, para alguns, dar-lhes um pouco de seu lixo aplaque o sentimento de culpa que guardam mofado por serem mais favorecidos; nada mais errado. 
Se tenho o que tenho, é o que tenho é o básico, uma boa casa, um emprego, uma vida razoavelmente confortável no aspecto financeiro, é porque trabalhei para isso. Com que direito o fuçador de lixo olha de modo intimidador para as pessoas, como a dizer que elas são as responsáveis por sua miséria, e que, portanto, têm que os aturar a embostearem suas portas?
Pena e compaixão dos fuçadores não têm a menor base ou fundamento. Não podemos, nunca, estabelecer conclusões absolutistas, mas ouso dizer, com certa tranquilidade em não errar, que a maioria deles não se sente excluída porra nenhuma, que se sente muito bem e à vontade sendo fuçadores.
Ofereça um emprego formal a um deles, com 8 horas diárias a cumprir, com metas a responder, com patrão a encher o saco, tendo que ir trabalhar chova ou faça sol, com horas determinadas para almoço, tendo que recolher impostos etc. Ofereça e espere pelo pior. Espere pela ira do bicho que não quer caçar para obter comida.
Já presenciei um caso, ao vivo e a cores. Uma ex-vizinha ofereceu um emprego a uma dessas fuçadoras que sempre passava pela rua; uma amiga dela precisava de uma empregada doméstica e faria tudo nos conformes da lei, a registraria e tudo. A fuçadora perguntou à mulher se, por acaso, ela estava pedindo emprego para alguém, se parecia que ela estava precisando trabalhar? E seguiram-se uma série de impropérios contra aquela que se pensou uma benfeitora, agressões verbais pesadíssimas. E já ouvi contarem vários e vários outros casos semelhantes .
Eles não são excluídos! Simplesmente pertencem a uma realidade diferente da sua. Eles não querem ser incluídos em outra realidade. Eles não querem a vida que você tem, eles só querem seus restos, seu lixo. Ofereça-lhes algo diverso e, repito, espere pelo pior.
Eles estão perfeitamente inseridos e adaptados à realidade deles, acharam um nicho que muito lhes apraz nesse nosso esgarçado e roto tecido social. Estão satisfeitíssimos em serem os rola-bostas dessa inusitada e bizarra cadeia alimentar que é a sociedade humana, cadeia que a natureza jamais ousou supor.
Sim, Bandeira, o bicho no lixo não era um bicho, era um homem, que era um bicho. Não se horrorize da situação nem se apiede dele em seus românticos versos modernistas. Apiede-se, antes, de si. Passe longe do bicho, poeta, corra dele.

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