Não é Carnaval, Mas é Madrugada (13)

Cravo Branco, de Paulo Vanzolini, certamente não é uma música de carnaval. Acontece que os seus versos, Ai, o pobre, caído no chão/De bruços no sangue/Com o cravo branco na mão, lembraram-me muito d'outros versos, A vista incerta/Os ombros langues/Pierrot aperta/As mãos exangues/De encontro ao peito/Alguma cousa/O punge ali/Que ele não ousa/Lançar de si,/O pobre doido!/Uma sombria/Rosa escarlata/Em agonia/Faz que lhe bata O coração..., esses do poema a Rosa, de Manuel Bandeira, incluído no livro Carnaval. Está aí o carnaval.
São imagens fortíssimas, tanto o Pierrot que traz a rosa escarlate enraizada ao branco peito de cetim quanto o pobre de Vanzolini, de bruços no sangue com o cravo branco na mão.
Imagens fortes construídas pelo contraste e pelo inesperado, contraste entre o sereno branco e o revolto vermelho, o inesperado da morte, seja a morte literal, do corpo todo, ou a metafórica, do coração que é arrancado em rosa e arremessado à sarjeta, abandonado por seu dono, que se põe a andar - e a viver daí por diante - com um buraco no peito, mais à sarjeta que a rosa que tivera que abandonar.
Mais que pelo constraste e pelo inesperado, pelo confronto e pelo abrupto. 
O confronto entre o branco, ilibado e porvindouro, e o vermelho, carregado de culpa, remorso, devassidão e pestilência. 
O abrupto da morte que não se podia adivinhar, o solavanco do vivo-agora-morto-um-segundo-depois, a morte que não concede tempo para planejamentos, para avisar e preparar os familiares, escrever testamentos, despedir-se dos amigos, cometer última loucura; enfim, a morte mais temida de todas, e, paradoxalmente, a mais piedosa, também. A morte que não nos dá tempo de pensar nela, de sofrer de antecipado com a sua ideia, a morte que não dá tempo de ficarmos com autocomiserações, como disse o próprio Vanzolini em outra de suas letras : Quando eu for, eu vou sem pena, Pena vai ter quem ficar.
De qualquer maneira, é cada vez mais raro e espaçado no tempo uma música me arrepiar, aquele arrepio de pããããta que o pariu, que coisa bonita do cacete; cada vez mais raro e esporádico uma música fazer com que eu a retroceda no toca-CD e a reouça várias e várias vezes, até decorar-lhe a letra.
Acho que ficar velho é um pouco isso, é cada vez menos se surpreender, se emocionar e se arrepiar, é não ter vontade de rever qualquer filme, de reler qualquer livro, reescutar qualquer música... sabe-se que não se têm mais grandes tempos. E Cravo Branco me surpreendeu, me arrepiou.
Não é música de carnaval, mas, de qualquer forma, é madrugada. De qualquer forma, o fundo de minha caneca já se deixa ver, mal oculto pela fina lâmina residual de cerveja, quente e sem espuma, a última da noite, ou a primeira do dia.
Cravo Branco
(Paulo Vanzolini)
Saiu de casa de terno tropical,
Camisa creme,

Lenço e gravata igual,
Jantou e saiu satisfeito,
Pra antes da meia-noite,
Morrer com um tiro no peito.

(bis)
Ela lhe deu o cravo,
O outro se ofendeu,
Ele olhou no revólver,
Dava tempo e não correu,
Dobrou o joelho, desabou no chão,
Os olhos redondos,
E o cravo branco na mão.


Ai, o pobre, caído no chão,
De bruços no sangue,
Com o cravo branco na mão.


Ai, o pobre, caído no chão,
De bruços no sangue,
Com o cravo branco na mão. 

A música está no CD Paulo Vanzolini Por Ele Mesmo e também no CD 1 da coletânea Acerto de Contas. Para apenas ouvi-la, sem precisar baixar, você pode clicar aqui, no meu poderoso MARRETÃO.

Postar um comentário

0 Comentários