Aí, Joe, Onde É Que Você Anda? Da Última Vez Que Te Vi, Nós Fechamos O Bar

Amigo, asseguram as gramáticas e os dicionários, é um substantivo; também pode ter função de adjetivo, o que me parece muito adequado, e de adjetivo dos bons. Mais que um adjetivo, até.
Amigo é vocábulo que congrega e funde em si dezenas de bons adjetivos, e verbos; amigo é uma colmeia de adjetivos trabalhando dia e noite, e em sincronia.
Amigo - aquele dos legítimos - talvez pertença a uma classe de palavras ainda não estabelecida, a dos supersubstantivos, ou a dos supradjetivos.
Falo do amigo que divide eras - antes dele e depois dele -, do amigo que a gente não constrói nem conquista, apenas olha e reconhece, que dá carona pra festa, que pede dinheiro emprestado pra cerveja, que estuda junto com você se você quiser, ou que não estuda nada e compartilha a nota ruim se você só estiver a fim de desabafar.
Falo do amigo que muda nosso modo de pensar, que remodela nossos caráter e personalidade, ou, pelo menos, faz aflorar em nós facetas até então escondidas, mesmo insuspeitas, falo do amigo que desenjaula nosso Mr. Hyde e pula pelos telhados e se esgueira pelos becos com ele.
Falo do amigo que vira espelho, oráculo, referência newtoniana, do amigo que nos ensinou mais que a enciclopédia Barsa.
Falo do amigo - e desgraçadamente é o mesmo - que vai sumindo de nossa vida com o passar do tempo, gradativamente, e nós também da vida dele.
Falo do amigo que, depois dos quarenta anos, vemos e conversamos quase que só em memória. Andamos com ele pelas ruas sem ele ao lado, vemos coisas que ele gostaria de ver e nos lembramos dele, passamos em frente de lugares que frequentávamos e um pedacinho de nossos fantasmas para por alí, para tomar um sorvete, comer uma pizza, tomar uma cerveja, os fantasmas se divertem e nós seguimos com a vida (seguimos com a vida, fazer o quê?), lembramos de alguma piada, ou de uma situação embaraçosa vivida por nós, e rimos sozinhos (quase um choro alegre), parecendo loucos para os loucos que andam normalmente pelas ruas.
Depois dos quarenta anos, voltamos a ter amigos invisíveis.
Falo do amigo que igualmente nos carrega a tiracolo de sua memória, que também lembra de nós quando assiste a um filme antigo, ouve uma música ou vê uma revista de mulher pelada, do amigo que também vive com vontade de nos telefonar, e acaba não telefonando, não por desfaçatez ou desimportância, porque é assim.
Falo do amigo que morreremos sem dizer o quanto lhe queremos bem, o que ele já sabe, mas que - puta que o pariu! - adoraria ouvir de nossa boca, nem que fosse só pr'ele dizer, deixa de viadagem, vai lá pegar outra gelada; falo do amigo que talvez morra antes de nós sem dizer o quanto nos quer bem, o que já sabemos, mas que - puta que o pariu - adoraríamos ouvir de sua boca, nem que fosse só para lhe dizer, deixa de viadagem, vai lá pegar outra gelada.
E é o que vou fazer nessa quase virada de dia (ou de noite), pegar a última ampola na geladeira, imaginando o amigo a praguejar contra a marca da cerveja, a reclamar que só compro da mais barata, que no dia seguinte acordará com dor de cabeça e caganeira.
Desligo a TV, apago as luzes. Bebo-a em silêncio respeitoso, quase de funeral - o que, de certa forma, não deixa de ser.
Logo nascerá mais um dia de trabalho improdutivo.

OBS : o título da postagem é um verso da belíssima canção Aí, Joe, de Edvaldo Santana (CD Jataí - 2011), composta em intenção a um amigo falecido, um amigo destes que falei, canção cuja letra eu pretendia reproduzir aqui e à qual umas poucas linhas serviriam de introdução, poucas linhas que foram se avolumando e se transformaram numa postagem independente, empurrando a canção para postagem posterior, amanhã ou depois.

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4 Comentários

  1. Joe, o tempo, andou mexendo com a gente, sim...

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    1. E eu não esqueço
      (Oh No! Oh No!)
      A felicidade
      É uma arma quente
      Quente, quente....

      E viva o Belchior! E viva o Gigio!

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  2. “Uma simples formalidade". Agradeço a esse filme por começar uma grande amizade, porém por inevitáveis situações que o tempo trouxe, ela se perdeu, infelizmente...

    Tímia

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    1. Há quanto tempo, Tímia.
      É um belo filme esse, um dos meus preferidos, com Roman Polanski e Gérard Depaudieu. Tenho ele em fita cassete, numa antiga coleção da Folha de São Paulo.
      Lamento pela perda de sua amizade, mas ficou o filme, certo? Muitas vezes contaminado pela lembrança de quem se foi.
      Apareça sempre por aqui.
      abraço

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