Gênios E Biscates

Faz-me um grande mal a leitura de certas obras de Bukowski. Todavia, poucas coisas me põem tão vivo e me dão visão tão nítida do mundo e da humanidade. Por isso, às vezes, arrisco-me em seus subterrâneos.
Reli "Factotum", que narra a trajetória de Bukowski pelos EUA pós-Segunda Guerra Mundial, buscando ainda ser publicado e pulando de subemprego para subemprego; demitido de todos. Apesar da linguagem propositalmente fácil de Bukowski, o livro é denso e triste.
Só não é choroso porque Buk não vacila. Nenhuma de suas linhas, por nenhum segundo, tomba às facilidade e comodidade da autocomiseração. Bukowski não chora e chora até ficar com dó dele mesmo; Buk bebe e vomita no mundo. Buk é estóico na desgraça. Não só não sente pena de si, é também seu maior crítico e algoz.
A tristeza de Bukowski não é das mundanas. É tristeza sem choro que a alivie, é tristeza abissal, sem nesga de luz no fim do túnel; sem túnel, inclusive.
No dobrar de esquina de cada página, há uma pequena e certeira porrada à espreita; no contorno de cada vírgula, uma rápida e precisa cutelada a tomar de assalto o leitor, a miná-lo lenta e infalivelmente. De novo, é tristeza rara, sem o menor respingo de pieguice. É tristeza aninhada e arraigada na placenta da melancolia. Tristeza do abandono a si próprio. 
Factotum foi transposto para o cinema, virou filme de mesmo nome. Sabendo, não resisti, e acabei por assisti-lo num dia desses. Uma porcaria. Do começo ao fim. Em tudo. Adaptação, roteiro, cenários...tudo uma merda, em nada condizente com o mundo do velho Buk. Como se não bastasse, o canastrão Matt Dillon foi o escolhido para encarnar o Velho Sujo - Bukowski lhe cuspiria na cara.
Fiz questão de ver até o fim, inclusive os créditos. A produção é uma parceria entre EUA, Noruega e Alemanha, e a responsável pelo projeto foi Linda Bukowski, a última mulher do escritor, a que estava com ele no azo de sua morte.
Os créditos finais de um filme deveriam ser os iniciais. Soubesse que ela estava metida na produção, nem teria começado a assistir.
Linda era uma estudantezinha de literatura quando conheceu Bukowski, e, imediatamente, deu-se conta do valor literário - e monetário - de sua obra. Amancebou-se ao escritor e, verdade seja dita, até cuidou dele em seus derradeiros anos; na verdade, cuidou da obra dele.
Ela foi recolhendo os escritos que Bukowski deixava dispersos pelo chão da sala, pelo quarto, pelo banheiro, cozinha etc. Humildemente, como quem recolhe as migalhas de seu senhor, foi organizando e catalogando a desordenada obra de Buk. Estava a encher o próprio baú, sabendo que viveria mais que ele e herdaria seu espólio.
Hoje, desgraçadamente, Linda é detentora dos direitos de toda a obra de Bukowski, e sobre ela tem total poder de decisão. Li uma vez - não sei se realmente procede - que os preços impostos por Linda à publicação da obra de Bukowski chegam a ser proibitivos para editoras de pequeno e médio porte.
Curioso como essa relação entre um gênio e uma aproveitadora sem talento é recorrente.
Acontece que esses caras, via de regra, são extremamente alheios às coisas práticas, muitas vezes mal se apercebem do valor do que produzem. É onde, então, eles abrem uma brecha para essas oportunistas improdutivas, que lhes "ajudam" a organizar suas vidas.
Em troca, ficam com a alma do gênio, e a comercializam. Negam-lhes, inclusive, o desejo de todo poeta maldito : o de que sua alma descanse no inferno. Prendem a alma do poeta em documento lavrado em cartório, selada, registrada, carimbada e rotulada.
Aproveitando o gancho, caso similar, no Brasil, é o de Raul Seixas. Kika Seixas, a última esposa do Maluco Beleza, esbalda-se com o legado de Raul. Decide quem grava e quem não grava as músicas dele, e, inclusive, quais músicas podem ser regravadas.
Zé Ramalho, amigo de longa data de Raul, teve o repertório de seu CD Zé Ramalho Canta Raul Seixas, um tributo póstumo, praticamente determinado por Kika Seixas. Muitas músicas que Zé pretendia gravar não foram liberadas por Kika.
Bukowski enviava de três a quatro contos semanais para revistas e editoras, esperando ser publicado. Não fazia cópia do que enviava nem tinha a certeza de que os originais seriam devolvidos. Raul, quando produtor da CBS, cansou de fazer música para os contratados da gravadora e nem punha seu nome nos créditos; o cantor estava para fechar o disco, precisava de mais uma ou duas músicas, o Raul ia lá, sentava, fazia e dava pro cara gravar.
Bukowski e Raul tinham o desapego que todo gênio tem da própria obra. Para eles, é igual a cagar. Podem até passar um, dois ou três dias constipados, mas têm a certeza de que logo a cagada desce, farta e quente.
O mesmo não acontece com suas ex-mulheres. Se elas não forem mesquinhas e gananciosas com as obras dos maridos, nada terão, pois nada são capazes de produzir. Totalmente desprovidas de talento, aferram-se ao legado do defunto, os cadáveres dos maridos são suas galinhas dos ovos de ouro, suas imerecidas aposentadorias.
Urubus da genialidade alheia, essas mulheres. Sem nenhuma criatividade, a roer e chupar o tutano dos verdadeiros criadores, sem-terras escrotas a estabelecerem assentamentos sobre latifúndios intelectuais e a usufruírem de todas as suas benfeitorias, nenhuma realizada por elas.
Acabam mesmo acreditando - tamanhos os cinismo e descaramento - que, por terem vivido ao lado do gênio, são responsáveis por parte de sua obra, coautoras, até.  Tsc, tsc, tsc.
Um brinde do mais puro e intragável rum - aquele da adega especial do Barba Negra - aos gênios criativos, escritores, pintores, músicos, cientistas etc.
E um trago de bosta às suas mulheres parasitas. Que nem sanguessugas podem ser consideradas, o sangue do poeta lhes é dádiva demasiada. São tênias, que mais do que os excrementos do gênio não merecem. Que não merecem sequer uma bela esporrada em suas caras.

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