A Escolinha

O mestre está atrasado. E sem mestre não há aula. Que tal descalabro se dê nos dias atuais, não torna o fato correto, apenas comum, tristemente comum.
Mas não aqui. O Inferno é tradicionalista. Não há nada mais conservador que o Inferno. Alguém, afinal, tem que manter a ordem.
O mestre está atrasado. Alguns alunos esperam por ele há anos, outros, há décadas. Pouco importa, o tempo transcorre diferente no Inferno, uma vez que tudo é diversão.
O mestre chega. Saudações irrompem pela sala, é mestre pra cá, é mestre pra lá, é mestre, como vai?, é mestre, há quanto tempo.
Não é apenas pelo devido respeito hierárquico que o chamam de mestre, é porque, de fato, é o que ele é, um mestre. Feito todos os que se dedicavam ao magistério em sua época, época em que não havia espaço para o amadorismo, para o farsante com o giz e o apagador nas mãos.
O Inferno ainda é essa época. Não há lugar para impostores no Inferno. Só os bons vão para lá.
O mestre se senta atrás da velha mesa de madeira entalhada à mão, o mesmo semblante carrancudo, o mesmo guarda-pó, a mesma voz rouca e segura.
- Seo Joselino Barbacena - começa o mestre
- "Ai, meu Jesus Cristinho! Já me descobriu aqui... Será impossíverrrr? Larga d'eu, sô! Larga d'eu, fedido"
- Zero.
- Seo Sandoval Quaresma, agora é pra tirar um dez
- Agora é que eu me estrepo, eu tava indo tão bem.
- Seo Eustáquio
- "Aqüi! Qüi qüeres?"
- É zero
- Faiô?
- Seo Baltazar da Rocha
- Sabo-lho.
- Seo Gaudêncio
- É o macho aqui, tchê, só não sou mais grosso por falta de espaço.
- Seo Galeão Cumbica
- Atenção, passageiros com destino a Maranguape, portadores da ficha cor de Raimundo, dirijam-se ao portão M e se piqueeem...
- Zero
- "Aí eu choro: au-auuu...!"
- Seo Mazarito
- Isso eu não sei... mas tem aquela da bichinha...
- Zero
- Nooooofa! Ziraaaldo!
Enquanto isso, deus está lá, do outro lado, ouvindo Gandhi discursar, depois Madre Teresa, depois João Paulo II, depois o Sting, depois o Bono Vox, depois o pessoal do Greenpeace.
Morrendo de inveja do capeta, mas regras são regras, só os parvos e os idiotas vão para o céu, ele as fez, nem ele pode mudá-las.
Por sorte, pensa deus, domingo é o dia do Senhor, sempre se pode ver a reprise na tv a cabo.
O mestre segue a sabatina, incansável, resignado.
- Seo Bertoldo Brecha
- Venha !
- Seo Bertoldo, a que classe zoológica pertence o camarão ?
- Da mãe. Camarão é a mãe ! E zéfini, zéfini.
- Seo Samuel Blaustein, vou lhe dar outro zero.
- Melhor zero na nota do que prejuízo na bolso, Raimunda.
- Dona Bela, a senhora já se sentou numa bela piroga ?
- Indecente, perguntar uma coisa dessa a uma moça invicta como eu, vá perguntar pras suas irmãs. Só pensa naquilo...
 - Seo Pedro Pedreira,
- "Há controvérsias! Não me venha com churumelas!"
- Seo Rolando Lero
- Amado mestre, banhe o breu da minha ignorância com suas palavras de ...
- É zero, seu corno gasoso.
A aula prossegue. Entre asneiras e reprimendas, entre traquinagens e sermões. Todos estão felizes com a chegada do professor.
E o capeta está lá, no fundão da sala, rindo às pampas, esperando sua vez de ser arguido e também receber seu zero. Comportadíssimo, o capeta, ouvindo, observando : aprendendo com o mestre.
 "Não tenho medo de morrer. Tenho pena."

Acho que é isso mesmo, morrer, às vezes, dá pena. Algumas mortes dão pena. Feito a de Chico.

Postar um comentário

4 Comentários

  1. Mais um gênio se foi. Para o céu? Para o inferno? Tem outra opção? Para o inferno tecle 1, para o céu tecle 2...para falar com um atendente tecle 3...Quem é que sabe que conte-me. Não aguento de curiosidade!
    Também sinto pena pela morte do Chico.

    ResponderExcluir
  2. Marreta, o primeiro texto seu que eu li foi o que você escreveu mencionando o QI do Roger "Ultraje" Moreira. Não parei mais de ler. Depois desse texto do Chico, vou ficar aqui lendo pra sempre. Parabéns cara.

    ResponderExcluir
  3. Saudades do Chico e da sua escolinha. As outras escolinhas, como a do Barulho e a do Gugu não chegam aos pés da escolinha do Raimundo.

    ResponderExcluir