A Inveja dos Idiotas

Nasci sem vocação para nada. E digo isso sem o menor constrangimento. Nunca uma atividade me envolveu ou me interessou a ponto de eu poder encher a boca e dizer, nasci para tal. Até porque acho que ninguém nasceu para coisa alguma. A vocação não existe, é mais uma invenção do ser humano para complicar a própria vida.
Nenhum ser vivo tem que ser nada além do que ele é : o macaco só é macaco, o cachorro só é cachorro, o pardalzinho, pardalzinho, a bactéria, bactéria. E, acreditem, todos vivem muito bem suas vidinhas.
A vida não precisa ser muita coisa, só precisa ser.
O bicho humano é o único que não se contenta em ser apenas humano, o cara tem que ser algo a mais, tem que ter "vocação" para algo além de sua natureza, cozinheiro, bombeiro, astronauta, médico, pedreiro etc etc. Que outro bicho tem que ter vocação para algo a mais que bicho?
E essa, eu acredito, é a origem de todos os seus problemas e transtornos. Fosse tão-somente o que é, humano, tudo seria muito mais simples e menos conflituoso. Mas não!
Depois de muito enrolar, depois de muitas voltas e rodeios, já com uns 30 anos, talvez mesmo para protelar um rótulo que anularia ou, no mínimo, se sobreporia à minha programada e básica aptidão, acabei professor.
Não tenho vocação para professor. Nos dias atuais, na maior parte do tempo, posso dizer até que nem gosto de ser professor. Mas tenho, cruel e irremediavelmente incutido, um gigantesco senso de responsabilidade. Outra invenção humana, a responsabilidade. Que outro ser a tem? Que outro precisa dela?
Não tenho vocação, porém, se me meti a tal, que eu seja, então, um bom professor. E eu sou. Bem acima da triste média atual. Nadando contra minha natureza, contra minha correnteza genética.
Não tenho igualmente a menor vocação para o convívio social, gosto de pouquíssimas pessoas. Mas acabo sendo enredado de tal forma que termino por me obrigar a conviver com pessoas com as quais não tenho nenhuma afinidade, muitas vezes para agradar e garantir próximos a mim os poucos de quem gosto.
Também acabo refém dessa rede social insana, vejo-me fazendo ou aceitando coisas como a dar satisfações para pessoas alheias à minha vida, às quais nada devo, que não pagam minhas contas e tampouco compartilham meus problemas, e que se julgam no direito de, ainda que veladamente, cobrar-me o comportamento padrão do bando.
Se não saimos de casa com nossas maquiagens sociais, corremos o risco de ser malvistos.
Que se foda, berra meu DNA! Tô cagando e nem me dando ao trabalho de andar de ser malvisto.
Contudo pessoas de quem gosto muito não estão cagando para isso, geralmente. Elas se importam; e, por suas associações comigo, podem tornar-se também pessoas não bem-vindas. Mais uma vez, por elas, eu nado contra minha maré genômica.
Apesar das eventuais derrapadas e recaídas, quero crer que tenho conseguido um resultado razoável nesse aspecto, também.
Fazer o que não sou hábil para tal, esforçar-me, inclusive, para fazê-lo bem-feito e, em algumas ocasiões, ainda ser incompreendido pela falta dessa habilidade natural, não me torna infeliz ou insatisfeito, nem me deprime. Não mesmo. Se faço, é porque há alguma compensação, algum ganho nisso. Não me torna infeliz.
Mas bem que me rouba um bom tanto de paz.
E não digo da paz que é a ausência de um conflito bélico. Digo da paz do repouso, da ausência de agitação ou ruído, da paz de se mostrar apenas para si, da paz do necessário ócio.
No desastroso pacto do homem com a Natureza (desastroso para os dois, aliás), ele ganhou aptidões para ser mais que simplesmente bicho. E deu em troca sua paz. E nem se apercebe disso, julga vantajosa a péssima troca feita.
As pessoas, inclusive, não conseguem viver em paz, têm que estar dentro do olho de algum furacão, têm de estar mergulhadas em algum barulho, algum caos.
Na quarta-feira, teve um jogo de futebol de decisão, ou classificação, ou sei lá o quê, e durante umas três horas não se conseguia fugir, a coisa estava no ar feito um vírus, do barulho de fogos de artifício e horrendas vozes humanas a gritar. Uma boa parte daquelas pessoas trabalhou o dia inteiro, provavelmente. Como não sentem a necessidade da paz de que falei? Como conseguem se divertir assim?
Na quinta-feira, outro jogo, outro campeonato idiota qualquer. E a situação se repetiu, ainda mais intensa. É inacreditável a facilidade com que o idiota consegue se divertir.
Estou ficando com medo.
Há um sentimento inédito a me rodear, a procurar um local de abordagem, um que eu nunca nutri por nada ou ninguém.
A inveja. E isso nem é o pior. O pior é o alvo dessa incipiente inveja.
Estou com medo.
Acho que estou ficando com inveja dos idiotas.

Postar um comentário

0 Comentários