Um Pouco de Beleza, Para Variar (4)

A bela flor abaixo, em todo seu esplendor verde e amarelo, é a Alamanda. Foto registrada próxima à rotatória de uma rodovia por cujas marginais faço minhas caminhadas.

Essa, a amarela, é sua variedade mais comum. Há também a roxa, quase que um vinho tinto, e a branca, sendo que esta, só conheço por fotos. Conheço a alamanda muito antes, inclusive, de lhe saber o nome. Por muito tempo, para mim, ela era a flor-d'Antônia. E, confesso, de vez em quando, ainda segue a ser.


Março de 1986. Após um malfadado semestre de Medicina Veterinária na Universidade Federal de Uberlândia no ano anterior, ingressei e comecei minhas atividades discentes no curso de Química, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Ribeirão Preto.

Não bastasse, à época, os calouros da Química serem os patinhos feios do campus, os pés-rapados, a formação da 23º turma teve uma composição ainda mais esdrúxula.

A Química - bacharelado e licenciatura - era, então, um curso em vias de extinção. A cada ano, cada vez menos de suas 40 cadeiras eram preenchidas, ou, quando eram, logo vagavam. Entre uma série de porquês, estava o fato de que a Química Ribeirão Preto podia ser indicada, no ato da inscrição para o vestibular, como segunda opção para a Química São Paulo, capital, sua prima mais cobiçada. E ainda como prêmio de consolação de uma série de outros cursos de exatas.

Ocorria, então, que os vestibulandos da capital, geralmente mais bem preparados, acabavam por abiscoitar as vagas dos caipiras do interior. Muitas vezes, nem vinham assumir suas vagas; por outras, muitos dos que vinham, aqui não faziam estada por muito tempo. Assim, o curso foi ficando ocioso, a um triz de ser decretado um curso vago.

Por conta disso, no citado ano de 1986, com apenas onze de suas quarenta vagas preenchidas, ocorreu o até então e acho que até hoje inédito 2º vestibular para o curso de Química. Uma repescagem. Aí, é que a mixórdia foi geral e irrestrita. Reprovados e fracassados no primeiro vestibular de todos os cantos e cursos - inclusive esta criatura abominável que vos fala -, acorreram a essas vagas. Turma mais heterogênea e colcha de retalhos que a 23º, impossível.

E eu, que sempre tive grandes dificuldades (ou falta de vontade e de paciência, mesmo) de me entrosar em novos ambientes e novas tribos, fiquei mais perdido que azeitona em boca de banguela. O que, para mim, era o normal. Nada de mais. Não me faria diferença, como nunca me fez, ser o cara mais popular da turma, ou o mais invisível. Sempre preferi, até, a segunda condição.

Porém, havia as disciplinas experimentais, duas no primeiro semestre do curso, Química Geral e Física I, que eram, obrigatoriamente, cursadas em duplas. Os pares foram sendo formados meio que naturalmente, autoselecionando-se, feito a formação dos times de futebol na educação física da escola, para os quais eu nunca era escolhido. E gostava de não ser. Da mesma maneira que na educação física, não fui escolhido para nenhuma dupla, ninguém me tirou para dançar.

Eu não estava, no entanto, sozinho em minha confortável solidão. Havia Antônia. Morena clara, 1,60 m e poucos, magra, cabelos pouco abaixo da altura dos ombros, 80% castanhos claros, 20% louros acobreados, olhos também castanhos claros e um nariz um tanto quanto adunco, que, ao invés de lhe incutir traços mais abrutalhados, masculinizados, antes pelo contrário, conferia-lhe um ar de grande solidez de caráter. Bela, sem dúvida. Mas uma beleza do tipo Onde Está Wally. Está lá, mas tem de se olhar com muita atenção para se ver. O meu tipo preferido de beleza.

Constatado que éramos os rejeitados, de que seríamos nossa única opção, Antônia aproximou-se de mim e disse : - sobramos, né? E passamos a trabalhar - trabalhar muito bem, por sinal - em dupla pelos dois semestres de 1986.

Quando tínhamos aula no departamento de Física, Antônia, sempre a primeira a chegar para a aula, não raro, colhia uma flor amarela de um arbusto à entrada do prédio e a encaixava entre a orelha direita e o cabelo. Eu ia me aproximando e já via Antônia, sentada em um muro lateral com a flor nos cabelos. Difícil dizer quem enfeitava quem. Era a alamanda. Que, em minha ignorância botânica, batizei intimamente de a flor-d'Antônia. Quantas e quantas vezes - todas findadas em retumbante fracasso -, eu, ainda com pretensões a ser um ilustrador algum dia, não tentei, de memória, esboçar o retrato a carvão de Antônia e sua flor amarela?

Antônia viera de Guarulhos, município da região metropolitana de São Paulo, também não passara no vestibular para a capital.

Passamos a conversar muito. Antônia gostava de filmes cults, gostávamos dos mesmo filmes. No entanto, nunca a chamei para ir ao cinema. Gostava de música, MPB e rock dos '80, gostávamos das mesmas músicas. Nunca a chamei para me acompanhar a um show do Sesc. Uma timidez patológica me assaltava à época. Eu era mais tímido que um caramujo com síndrome do pânico. Parecia até a letra da canção Lígia, do maestro soberano Tom Jobim : "Eu nunca quis tê-la ao meu lado num fim de semana, um chope gelado em Copacabana, andar pela praia até o Leblon... E quando eu me apaixonei não passou de ilusão, o seu nome rasguei, fiz um samba canção das mentiras de amor que aprendi com você...".

Desnecessário dizer : apaixonei-me perdidamente por Antônia. Ela por mim? Nunca soube. Jamais saberei. Dávamo-nos muito bem. Ríamos muito a falar mal dos outros. Antônia quase não conversava com mais ninguém além de mim, e eu, com quase ninguém além dela. Pegávamos sempre o mesmo ônibus ao fim do dia letivo. Ela descia no centro da cidade, eu seguia um tanto mais adiante. Antônia, invariavelmente, à janelinha. Por poucas e desastradas e felizes vezes, meu ombro roçava o dela em alguma virada mais brusca do ônibus.

Quando ao lado de Antônia, no ônibus, desenvolvi uma espécie de olfato periférico. Concentrava-me, sem virar o rosto, em sentir-lhe o cheiro de seu fim do dia. Resquícios de um perfume meio cítrico misturado a suor e ácido nítrico, ou a fenolftaleína, ou a azul de bromotimol, ou a sódio metálico, ou a o que quer que fosse o que tivéssemos manipulado durante o dia.

Uma vez - uma única vez -, fatigada, adormeceu com o balanço do ônibus e recostou a cabeça no meu ombro. Odiei ter de acorda-lá e avisar da chegada de seu ponto de descida.

Nunca tive coragem de me declarar (uma timidez patológica me assaltava à época. Eu era mais tímido que um caramujo com síndrome do pânico). E nem Antônia, caso gostasse também de mim.

No fim do ano, no último dia letivo, Antônia chegou na faculdade já de mala e cuia. De lá, iria direto para a rodoviária. Da mesma maneira que eu havia feito nas férias do meio do ano, acompanhei-a à rodoviária, é claro. No caminho, como em outras milhares de vezes, pensei em lhe dizer o quão eu gostara daquele ano em sua companhia e que achava, sim, que gostava muito dela, que quereria formar mais que uma dupla, um casal com ela. Mas, claro, só pensei.

O ônibus - viação Cometa - chegou, desgraçadamente, no horário. Por que eles nunca atrasam quando mais precisamos?
Peguei as duas malas de Antônia e as entreguei ao motorista, que as etiquetou e acomodou naqueles bagageiros externos do ônibus. A fila de passageiros à entrada do ônibus foi diminuindo, e chegou a vez de Antônia embarcar. Ela pôs, então, a palma de sua mão na minha face direita (gelei, apesar do agradável calor que dela emanava) e beijou-me a face esquerda. Nunca fizera isso antes. Disse-me tão-somente : - vou sentir sua falta nessas férias.

E o filho da puta aqui mal conseguiu tartamudear que também, que também sentiria a falta dela.

Decidi-me naquela hora, assim que o ônibus zarpou de sua plataforma : declararia-me a Antônia na volta às aulas, daí a dois meses, mais ou menos. Ensaiei meu teatro centenas de vezes naquelas férias. Às vésperas do início do ano letivo de 1987, comprei um livro para presenteá-la. Um autor de que ela gostava muito e do qual eu também aprendi a gostar, uma vez apresentado a ele por Antônia. Caio Fernando Abreu. Morangos Mofados. Guardo o livro até hoje.

O ano começou e Antônia não apareceu no primeiro dia. Nem ao fim da primeira semana. Nem ao fim da segunda. Fui à secretaria da faculdade, à seção de graduação, falar com o Maurício, o ranzinza mais gente boa que já conheci. Maurício reclamava, nos xingava, mas nos ajudava no que era possível e, principalmente, no que era impossível, com nossos horários, com nossas DPs, com nossas grades curriculares.

Indaguei a ele, um tanto envergonhado, sobre Antônia. - Não sabia, não?, ele perguntou. - Ela conseguiu vaga e equivalência para o segundo ano na USP, São Paulo. Vagas para os segundos anos dos cursos de exatas eram muito comuns, dada à alta desistência deles no primeiro ano.
Não, eu não sabia. Antônia nunca havia sequer deixado subentendido que tentaria uma transferência. Ou eu nunca quisera enxergar.

Adivinhando, possivelmente, o meu pensamento, Maurício perguntou, você tem o telefone dela, quer que eu passe o número pra você?

Agradeci e declinei da oferta. Não quis o telefone de Antônia. Orgulho besta e ferido? Talvez. Mas pensei - e esse sempre foi meu mal, pensar muito, racionalizar -, se ela não me comunicou de sua partida, das duas, uma : ou fui tão insignificante para ela, que nem se deu ao trabalho de me dizer, ou signifiquei demais, e ela teria dificuldades em se despedir de mim.

O que sei é que nunca mais vi ou falei com Antônia. Eram tempos em que nem supúnhamos a internet e toda essa conectividade insana e doente. Os assuntos eram enterrados definitivamente, como tinham de ser. Menos na memória, é claro, menos na saudade, que são os melhores campos santos em que podem ser sepultados.

De Antônia, além dos dois agradabilíssimos (e angustiantes, Agônia e Êxtase são irmãos xifópagos) semestres passados ao seu lado, ficou a Alamanda, a flor-d'Antônia. Se eu pudesse perguntar algo a ela hoje, eu quereria saber : será que você ainda pensa em mim, será que você ainda pensa em mim? 

Valha-me São Herbert Viana, o padroeiro dos malas e cagadores de regra.

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6 Comentários

  1. Quem não tem uma 'Antônia ' , enterrada na memória. Belo texto.

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  2. Muito bom, muito comovente (para mim). Às vezes nós dois olhamos para direções opostas, mas penso que temos uma conexão emocional bastante significativa para mim. Ah, a timidez paralisante da juventude!, quantos estragos me (nos) causou!

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    1. Acredito que nossos olhares opostos se limitem apenas ao campo da política, no resto, eles são bastantes convergentes.
      O bom de termos nascido no século passado foi que tivemos que apanhar, sofrer muito para nos livrar dessa timidez, ou pelo menos controlá-la, amestrá-la. Se fosse hoje em dia, os pais nos levariam ao psiquiatra, ele nos diagnosticaria com algum transtorno disso ou daquilo e nos drogaria desde cedo.

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  3. Fala, Marreta.

    “Mas uma beleza do tipo Onde Está Wally”
    Esta frase vai para meu caderninho onde escrevo observações que, creio, nunca mais consultarei. Mas vale a pena registrar.

    “flor-d'Antônia”
    Nome mais bonito que o científico ou popular.

    Marreta, não é impossível encontrar algum contato de Antônia. Tentar se lembrar do nome completo dela e faz uma busca profunda em rede aberta. Se não der nenhum resultado, use um sistema (pago) chamado Credilink. No meu trabalho, usamos um sistema público de coleta de dados em vários órgãos de todo o país. Mas o mais eficaz é realmente este, particular, tanto que alguns amigos meus compram pacotes de consulta para facilitar o trabalho e pagam até do próprio bolso. É impressionante como uma empresa privada junta tanta informação nossa.

    Certamente, você não tem nem teria mais nenhum interesse íntimo em “Toinha”. Mas falo pela amizade, pelo interesse em poder trocar uma ideia com aquela amiga que foi tão legal.

    Tive uma “paixonite” de adolescência e deixamos de nos ver aos 15/16 anos de idade. Após quase 15 anos, fiquei curioso sobre ela e não a achava em nenhuma rede social. Fui perguntando a vários amigos da época e juntando pistas. Então um dia descobri onde achá-la, reservei uns dias que estaria de folga, dirigi uns 700 km e fui bater à sua porta (sem ligar antes, mas sabia estar solteira para evitar problemas). Foi muito legal. Almoçamos e jantamos fora, trocamos as novidades acumuladas e posso dizer que ficamos, novamente, amigos. Eu não sentia mais nada por ela, a não ser carinho pela amizade bacana. Se ela sentia algo, não sei, não perguntei nem dei abertura para o assunto. É algo que realmente não me interessava mais. Mas valeu demais, para nós dois, nos revermos.

    Sobre “Antônio”, te deixo com meu poeta preferido: Manuel Bandeira.

    Namorados

    O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
    -Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
    A moça olhou de lado e esperou.
    -Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
    A moça se lembrava:
    -A gente fica olhando...
    A meninice brincou de novo nos olhos dela.
    O rapaz prosseguiu com muita doçura:
    -Antônia, você parece uma lagarta listrada.
    A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
    O rapaz concluiu:
    -Antônia, você é engraçada! Você parece louca

    Abraços!

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  4. Rapaz, valeu pela dica, mas isso já se vão quase 40 anos, e acho que tem assuntos que a gente deve deixar quieto. Se eu a achasse hoje, e aí? Talvez mal nos reconhecêssemos, somos pessoas totalmente diferentes hoje. Acho melhor guardar apenas a recordação.
    Eu conhecia esse poema do Bandeira, mas não me recordava dele. Ótima lembrança.
    Abraço.

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  5. Minha primeira paixão foi na quarta série, ou na terceira, não lembro exatamente. Até hoje penso nela em alguns momentos. A segunda grande paixão foi na sexta série, ou na sétima, também não lembro exatamente. Esta também está em minha memória. Se na primeira eu era totalmente criança, ainda que tinha vontade de me declarar pra ela, na segunda eu já poderia ter conseguido algum progresso, mas era absurdamente tímido, timidez que me acompanhou ainda durante muito tempo. Tive uma terceira grande paixão ainda, já na casa dos 30 anos. Com essa, quase casei. Mas as duas primeiras, nunca esquecerei.

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