Pequeno Conto Noturno (85)

04:23 h, no visor vermelho do anêmico, artrítico e com canais dentários a tratar rádio-relógio de Rubens. Rubens foi acordado por vozes. Mas como? Se há tempos dorme com protetores auriculares a servir de travesseiros para os seus tímpanos, daqueles de espuma expansível cor de laranja? Rubens foi despertado por luzes. Mas como? Se, igualmente, amordaça os olhos com aquelas máscaras negras, que não a do Zé Keti? Rubens foi posto em vigília pelo ranger de seus dentes, pelo seu bruxismo. Mas como? Se, também, não de hoje, exorciza suas fadas e bruxas de Salem com uma placa de silicone moldada à sua arcada dentária inferior?
Rubens nunca ambicionou roupas e calçados de grife, carrões importados, relógios de ouro, modelos loiras e peitudas (não se tivesse que pagar por elas). Nunca ambicionara nada de material em especial. Até que assistiu ao filme Demolidor, o Homem sem Medo, com Ben Affleck. Rubens, então, desejou violentamente uma daquelas câmaras de isolamento, um daqueles esquifes metálicos de supressão de estímulos externos em que o espancado, lacerado e automedicado de opioides (quis os opioides também) Matt Murdock conseguia dormir (será que descansava?) após uma noite como o Demolidor, o mestre-cuca da Cozinha do Inferno; com seus super-sentidos, enfim, livres da algazarra do mundo.
Filme, esse, inclusive, dos mais injustiçados pelo público e pela crítica, dos mais subestimados da transposição da mitologia Marvel para os cinemas. O próprio Ben Affleck o renega, diz-se arrependido de tê-lo feito. A Marvel nem o considera parte de sua filmografia oficial. Rubens o tem como o melhor do gênero já realizado. O mais fiel aos gibis, à origem da personagem e aos seus propósitos ao vestir o uniforme. A cena do ringue em que Jack Murdock manda às favas o seu empresário mafioso e vence a luta que combinara perder, seguida de sua execução em um beco escuro, é puro John Romita Jr. As igrejas góticas e seus esplêndidos vitrais é puro Frank Miller. A duplicidade de ser advogado durante o dia e executor durante a noite é regada com a dose certa de angústia, remordimento e culpa católica do personagem. Dispensável, só a luta com a Elektra num playground infantil, as coreografias erótico-marciais no gira-gira, o tango de Shaolin nas gangorras. Mas o Demônio também precisa se divertir. Um puta dum filme, considera Rubens.
Quis intensamente uma daquelas cápsulas de alheamento do mundo. Mas nunca procurou saber se algo do tipo existia ou não, se era apenas adereço cinematográfico. Ainda que existissem, esses sarcófagos de pequenas mortes programadas e temporizadas, Rubens não teria numerário para adquirir um deles.
Improvisou com os protetores auriculares, a máscara negra e a placa bucal. Sua versão agonizante dos Três Macacos Sábios. Nada ouço, nada vejo, nada falo.
No entanto, Rubens foi acordado por vozes. Por quais vozes? Uma quimera delas, pareceram a Rubens. Uma figura de três aparelhos fonadores. Virna, Yrina, Selene.
Não obstante, Rubens foi despertado por luzes. Por quais luzes? Outra quimera. A leitosa da Lua Cheia, a azul-nicotina do Paulistânia em noite de cover do Raul, a da cozinha de sua casa, decomposta em arco-íris de tons de café recém-coado em coador de pano.
Ainda assim, Rubens foi posto em vigília pelo bruxismo. Por quais sortilégios? Mais que outra quimera, uma Hidra de Lerna, neste caso, uma cabeleira de Medusa. Sabe-se lá de quantos feitiços, mandingas, malefícios, simpatias e trabalhos de amarração, Rubens já não fora alvo?
Rubens retira a máscara negra e a placa bucal. Mantém os protetores auriculares - os mais difíceis de serem recolocados. Na geladeira, três latões de cerveja e uma garrafa de rum; com três ou quatro doses remanescentes, avalia Rubens.
Rubens pega o rum. E emborca.

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