Queernejo, o Sertanejo que Senta no Cabo da Enxada (Ou : Você Achou Mesmo Que o Sertanejo Universitário Fosse o Que de Pior Havia Para Acontecer?)

Chegar ao fundo do poço não é, necessariamente, algo ruim, apenas ruim. Vestindo os óculos do otimismo (que sempre carrega em si o gérmen do conformismo), chegar ao fundo do poço pode significar que a situação, embora trágica, adversa e desastrosa, não tem como piorar mais, que o infortúnio, seja ele reversível ou não, pelo menos, não pode mais se agravar. É um consolo. De uns 30 cm de comprimento por uns 8 de diâmetro. Mas um consolo.
Mas há poços em que aqueles que atingem o seu fundo, não satisfeitos, esmeram-se em aprofundá-lo mais um tanto, em cavar mais um bocadinho, e outro bocadinho, e outro bocadinho, ad infinitum.
Feito o que me parece ser o poço do gênero musical conhecido como sertanejo. Gênero que, em outrora, lá nas suas raízes, era dos mais autênticos, dignos e macho das antigas. As sofridas, pungentes e lamuriosas modas de viola eram compostas por matutos trabalhadores, por homens sem nenhum refinamento, broncos, homens do campo endurecidos pelas intempéries do clima e da vida, homens que, não obstante, também guardavam em si as suas vulnerabilidades, suas angústias, seus sonhos deixados de lado e, claro, suas dores de cotovelo e de corno.
Com o tempo, a legítima música sertaneja foi sendo conspurcada, adulterada, corrompida; enfim, desgraçadamente modernizada e jogada na lama movediça em que hoje se encontra.
Não sou um conhecedor nem ao menos raso do gênero, mas o primeiro golpe sensível e significativo levado pelo sertanejo raiz, o primeiro sinal de que sua corrupção, ainda que gradativa e quase sub-reptícia, viera para ficar em definitivo, creio eu, foi o advento do chamado "sertanejo romântico", lá nas décadas de 1980 e 1990. O sertanejo dos "Amigos", cujos expoentes foram/são as duplas Chitãozinho e Xororó (os pais da Sandy e do Junior), Leandro e Leonardo, e Zezé di Camargo e Luciano.
Já não era mais a música caipira do caipira paulista, mineiro ou goiano; já não era mais a música que meu avô paterno ouvia no seu velho rádio à válvula de ondas médias, curtas e tropicais. O sertanejo romântico flertava e se arreganhava para a música caipira ianque, deixou-se miscigenar e contaminar pela música country americana. 
O sertanejo virou pop. E o pop - valha-me São Humberto Gessinger - não poupa ninguém. No lugar do pranto sentido da viola, a histeria da guitarra elétrica e o chiado metálico do banjo; no lugar da luz do lampião a acalentar a escuridão das pequenas varandas, os holofotes de mil watts dos palcos dos rodeios e das festas de peão de boiadeiro. Era o sertanejo new wave.
Apesar disso, olhando hoje em retrospecto e sob a luz da terrível realidade, vemos que o estrago causado pelo sertanejo romântico nem foi dos maiores. Ainda que a música sertaneja tenha sido adulterada em sua essência melódica e instrumental pelo sertanejo romântico, ela continuou intacta em sua masculinidade e origens geográficas e laboriais. Continuava a ser composta e cantada por homens do campo, que muito araram o solo antes do sucesso artístico, que muito carpiram terrenos, por homens que traziam a fértil terra roxa sob as unhas, em cujos dedos e palmas das mãos, os calos do cabo da enxada faziam companhia e segunda voz para os calos das cordas de aço do violão. E tudo espada! Tudo comedor das antigas. Tudo passador de rodo!
Além disso, não era sempre, mas vez ou outra, apareciam canções muito bem escritas, com belas letras, sobretudo as das lavras iniciais de Zezé di Camargo, de quem Maria Bethania, que nunca foi boba nem nada, gravou É o Amor. 
Para o violeiro das antigas, no entanto, o sertanejo estava morto. Os "Amigos" eram o fundo do poço. 
Então, década e pouco depois, entre início e meados dos anos 2000 (isso eu tive que pesquisar para saber), veio uma turma das mais musicalmente desclassificadas e cavou mais um tanto o fundo do poço do gênero sertanejo. Mais um bom tanto. E bota tanto nisso. Cavou tanto que atingiu os lençóis freáticos do mau gosto e fez jorrar a água podre da futilidade do subsolo, da submúsica, da subcelebridade.
Era o sertanejo universitário. Tudo universitário de curso à distância e com ingresso por cotas. O sertanejo universitário causou avaria infinitamente maior que o sertanejo romântico das décadas de 80 e 90, que, como eu disse, não causou grandes danos em si, mas abriu precedentes para o que viria de pior depois.
O sertanejo universitário não tirou do sertanejo de raiz apenas suas estruturas melódicas e instrumentais, subverteu-lhe também em suas origens campesinas humildes e honradas. É um "sertanejo" urbano, saído dos condomínios e das escolas particulares. Também põe em dúvida a masculinidade inerente ao gênero, uma vez que o sertanejo é, antes de tudo, um macho das antigas. Dizem e "cantam" que gostam de mulher, mas só as suas mães e avós são quem lhes acreditam. 
Não trazem mais a terra embaixo das unhas - duvido que algum sertanejo universitário tenha plantado sequer uma batata ou uma mandioca na vida. No lugar dos calos nas mãos e dos calcanhares rachados, a manicure e o podólogo; no lugar da pele curtida pelo sol, o bronzeamento artificial em spas, a hidratação, o peeling facial, a arquitetura de sobrancelhas e a depilação a laser do saco. No lugar do burrico ou do carro de boi, a Hilux importada e "tunada"; no lugar da pinga de alambique tomada na venda ou no armazém de secos e molhados, o Red Label com Red Bull na loja de conveniência.
E as tais "músicas", então? Só a letra de Fio de Cabelo, de Chitãozinho e Xororó, tem mais texto e conteúdo que toda a discografia do Luan Santana e a da dupla João Bosco e Vinicius, juntas (também tive que pesquisar para saber quem eram os bambambãs do sertanejo universitário).
Enfim, o fundo do poço do sertanejo? Teriam sido alcançados os graus máximos de degradação e descaracterização do dantes valoroso gênero musical? Enfim, o tão desfigurado e avacalhado sertanejo iria poder, ao menos, descansar em paz sobre as suas ruínas, sem que ninguém mais voltasse a incomodá-lo? 
Até eu pensei que sim. Na verdade, mas que pensar que sim, eu torci muito para que sim. Porque mesmo que eu não coloque para ouvir no toca-CD, esses novidades e modismos acabam por nos atingir de qualquer forma, ainda que por linhas indiretas acabamos por ficar sabendo delas.
Mas não. Sou um puta de um pé frio. Minha torcida foi em vão. Fiquei sabendo ontem, por um e-mail sacanamente enviado por um velho amigo, que uma outra turma chegou ao fundo do poço do sertanejo e resolveu cavar ainda mais. E chegaram munidos não de pás ou de picaretas, sim de sondas de prospecção. Dessa vez, essa nova vertente sertaneja atingiu o pré-sal do absurdo e do despropósito. 
Fundado no Brasil no ano passado, é o Queernejo! O sertanejo LGBTQetc! É o boiolonejo. É o sertanejo a procurar por suas raízes, principalmente a da mandioca! É o sertanejo de volta ao cabo da enxada, nem que seja pra sentar nele! Agora, o sertanejo não perdeu apenas a sua essência melódica e suas origens, perdeu também as pregas! É o Jeca Gay! Valha-me São Moacyr Franco!
Um dos fundadores e líderes do movimento Queernejo brasileiro é Gabriel Felizardo, 21 anos, que atende pelo nome artístico de Gabeu. E o menino, ou menine, ou meninx, tem pedigree e selo de procedência na área. É filho do cantor Solimões, da dupla Rio Negro e Solimões. Gabeu diz que sempre viveu uma relação de amor e ódio com o sertanejo, com o gênero que lhe proporcionou uma vida muito boa e confortável, pois nunca se sentiu "representado" por ele, e decidiu usar a sua indignação para revolucionar a cena sertaneja.
Fico imaginando a cara do Solimões, macho das antigas. E também as zoeiras do Rio Negro para cima do amigo de dupla.
Fico também a imaginar os clássicos do sertanejo de raiz sendo vertidos e invertidos para o Queernejo. A Cabocla Tereza vira o Bofe Terêncio; É o Amor! vira É o ardoooor...; Tocando em Frente vira Socando Atrás; Pinga ni mim, Porra ni mim; Saudades de Matão, Ai, Que Saudades do Miltão; e Cabecinha no Ombro, Chapeleta no Toba.
Pãããããããta que o pariu!!!!

Postar um comentário

15 Comentários

  1. Também lamento esses novos tempos do sertanejo,que também já foi descrito como música caipira.A grande Inezita Barroso descreveu a perfeição esses novos tempos classificando-o como "sertanojo". Agora essa nova moda queernejo,não sabia dessa digamos modalidade.Esse último parágrafo,embora seja uma triste conclusão me fez rir demais. Imagine uma nova versão e letra para "No rancho fundo".

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito boa lembrança, a Inezita. E ela não foi apenas uma grande intérprete da autêntica música caipira, foi também uma de suas maiores pesquisadoras. Viajou praticamente todos os estados do país a bordo de um jipe a pesquisar e coletar dados sobre as variantes regionais do sertanejo. Sertaneja das antigas feito ela, talvez o último em atividade seja o Rolando Boldrin.
      E eu bem que, quando estava escrevendo o texto, fiquei um tempo matutando sobre um título queer para o Rancho Fundo, mas não me ocorreu nada.

      Excluir
  2. Olá, Marreta.

    Lembro que um colega me disse certa vez que as músicas estão todas indo para o brejo. Cada vez afundando mais na lama.
    Veja, primeiro tínhamos música clássica. Essa decaiu para o Jazz (ainda bastante complexo). Depois veio o rock, destruindo tudo e arruinando os arranjos, apesar de ainda ter algumas letras com algum sentido. Depois veio o pop e, como você bem lembrou, este não poupa ninguém, destruiu a letra e acabou com as melodias, criando canções com mono acordes. Mesmo assim, algumas canções ainda são de se aproveitar, tendo em vista o que temos hoje.
    Os antigos sertanejos ficariam horrorizados com o atual, imagino também os forrozeiros do sertão nordestino com a mesma reclamação. Mais aterrorizante ainda é a turma que os rappers trouxeram com um tal nome de funk, esses não têm nem melodia direito e as vozes de taquara têm que ser mascaradas digitalmente.

    Abraços!

    ResponderExcluir
  3. Respostas
    1. Valeu. Bom que tenha gostado. Primeira vez por aqui? Como chegou até o blog?

      Excluir
  4. Azarão, eu me rendi ao café gourmet!!! Comprei até uma cafeteira pra fazer aquele café expresso. Devo me preocupar? (Sessão oráculo). Pããããããããta!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não deixa de ser um prenúncio, uma predição... é bom não ignorar os sinais.

      Excluir
  5. Não sabia disso. Não queria saber. Mas vivo neste mundo e preciso me informar. Assim que li "Queernejo", associei logo ao mundo "queer". E descobrir isto foi sofrível.

    Quando você discorre sobre o estrago na música, é bem o que falo com algumas pessoas. Sequer supúnhamos que o estrago seria pior. E pensar que o pagode dos anos '90 era "lixo", bem como o Axé Music. Hoje, são clássicos que despertam até saudades... Pois o caldo desandou.

    O Jeca Gay, hoje, seria proibido. Primeiro porque ofende a categoria. Segundo, porque tinha o Valadão para lhe descer a lenha (de todas as formas). E isso "estimularia" a violência doméstica. Como, não sei. Aqui em casa, é mais fácil eu apanhar de minha esposa, que levanta trocentos kg nos treinos e tem as coxas que parecem pedras.

    Abraços!

    Tempos infames, Marreta!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, aqui em casa também, se bobear quem apanha sou eu.
      E é verdade, o É o Tchan era um lixo, mas tinha duas gostosas rebolando o toba e o Cumpade Washington era macho. O Jacaré, sei não...
      Valadão? O nome do comedor e cafetão do Jeca Gay não era Malão?
      Abraço.

      Excluir
    2. Lendo o texto, eis que foi despertado meu lado "piá pançudo", como se diz lá no sul. Já imaginei o tal "Gadeu" cantando "Pica ni mim" (sic) (na verdade, nele mesmo).

      Depois dessa, com certeza Solimões parou para refletir: "ah, se eu tivesse batido uma punheta naquele dia...".

      E em tempo, Valadão era o marido cabra macho da Dona Santinha Pureza, interpretada pela mesma atriz que fazia a Célia Caridosa de Melo na Escolinha do Prof. Raimundo. Esse sim, marido agressor das antigas, que em nada lembra seu quase homônimo Jesse... esse último, se não me engano, virou evangélico antes de bater as botas. Como todo bom bandido que se preze, diga-se de passagem.

      Excluir
    3. Agora fiquei na dúvida... Pensei que era Valadão! Mas deve ser Malão mesmo. O importante é que tinha "ão".

      Excluir
    4. Para checar, assisti a alguns vídeos do Jeca Gay e, sim, o bofe dele era o Malão. Mas como você disse, o que importava para o Jeca era o "ão".

      Excluir
    5. Foi isso mesmo. Jece Valadão virou pastor da Assembleia de Deus.

      Excluir
  6. Esse assunto sempre me incomodou e não estou falando do queernejo. Venhamos e convenhamos, sem querer ser preconceituoso e apenas registrando o que já vi e ouvi nas centenas (milhares?) de programas de auditório que assisti pela televisão, desde o Chacrinha, Bolinha, Silvio Santos, Gugu Liberato, Airton Rodrigues e Raul Gil e outros que já esqueci, o gosto da maioria da população privilegia as letras, nunca as melodias. E o pior é que as de maior sucesso sempre falam de abandono, traição, solidão, desilusão, corno, corno, corno, levando-me a pensar que a maioria das pessoas é mal amada. Por isso, músicas que falam do inhambu xintã e do xororó ou da vaca Estrela e do boi Fubá não dão ibope nenhum. Além do mais, são muito caipiras e nada a ver com o “sertanejo” urbanizado. Desde o dia em que eu ouvi o Zezé de Camargo dizer que “música sertaneja é música romântica cantada em dueto” eu descobri que não havia salvação para esse gênero. Nessa linha de raciocínio, a dupla Simon & Garfunkel também cantava música sertaneja. Para mim, a música sertaneja se enquadra na categoria música brega, popularesca e de má qualidade, fazendo companhia ao tipo de música que os finados Evaldo Braga, Valdick Soriano, Vando e Reginaldo Rossi cantavam: melodias simples e letras arrebatadas, de gosto duvidoso e refinamento zero.
    Eu prefiro chamar o “sertanejo raiz” de música caipira. Como você bem lembrou, o Rolando Boldrin é um ilustríssimo representante e remanescente dessa linha. Mas acrescentaria ainda o Almir Sater e o Renato Teixeira. Mesmo que eu não curta, têm todo o meu respeito. Mas não tenho nenhum grilo com o queernejo, pois a música “sertaneja” não é exclusividade apenas de homens. E já existiu a versão caricata desse nicho, que é a dupla Rosa e Rosinha.
    Para terminar essa goma insossa, fica a sugestão de transformar o “Rancho Fundo” em “Racha Funda”. Não tem o mesmo sentido, mas quem se importa com isso?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O gosto da população privilegia as letras? Antes fosse, meu caro. Estaríamos todos a ouvir Chico Buarque nas rádios. Acho que o grosso da população privilegia é o tumulto, a aglomeração, não importa a música ou o barulho que esteja a sair das caixas de som, se a "galera" estiver presente, é o que está valendo.
      Também não tenho nada contra o Queernejo em si, ou qualquer outro gênero que represente a boiolada, só não gosto dessa apropriação de gêneros antigos como referência, como forma de, talvez, um atestado de procedência e qualidade, que, evidentemente, não existe.
      É parecido com o que eu sempre falo de personagens de quadrinhos gays ou não. Que se criem novos personagens já com esse intuito. E não que se tomem personagens antigos, cuja sexualidade, inclusive, nunca foi pauta de suas histórias e os levem para a "irmandade", como dizia o Seo Peru.
      Sim, lembrei do Rosa e Rosinha, mas achei que a postagem acabaria ficando um pouco longa demais e fugindo um pouco do propósito. Outro que também, sempre em tom de paródia, já fez muita música "queer", é o mineiro Kakinho Big Dog, que acho que você deve conhecer. A clássica é "Cumpade Osório", se não conhece : https://www.letras.mus.br/kaquinho-big-dog/424281/
      Dele, também tem a "Faz mais uma vez, Rodrigo". Mas duvido que esse novo queernejo os aceitasse como seus representantes, com certeza diriam que eles faziam uma versão caricata e esteriotipada do gay. Mas enfim...

      Excluir